Meu primeiro mar

Estou com 18 anos. Há apenas três dias vi o mar, pela primeira vez. Seu nome era Ariovaldo. Eu o acabara de conhecer junto ao balcão de um banco na Avenida Amazonas. Ele me contou que, na semana que viria, iria satisfazer um desejo que o perseguia desde seus tempos de menino: viajar ao Rio de Janeiro para conhecer o mar. O homem teria uns quinze anos a mais do que eu. Comerciava com automóveis e parecia estar bem de dinheiro. Ao nos despedirmos, já na calçada, vi-o embarcar num Cadillac último tipo, de duas cores, desses hidramáticos.

Dois dias depois, volto ao banco e o encontro junto ao balcão. Perguntei-lhe como iam os preparativos para a viagem. Disse-lhe que também sonhava em visitar o Rio de Janeiro, especialmente para conhecer o mar. Surpreendeu-me, o homem, com o convite para acompanhá-lo em sua viagem. Atônito, aleguei compromissos na semana seguinte, e menti-lhe sobre a falta de dinheiro. Ariovaldo retrucou que qualquer problema ficava pequeno diante da beleza que deve ser o mar.

Penso comigo: um dia também irei ao Rio de Janeiro, mas por conta própria e na companhia que eu mesmo escolher. Ariovaldo deu conta do que pensei. Ofendido, disse-me que não era viado, que queria apenas ser gentil, que gostaria da companhia de alguém assim como eu, com cara de gente honesta e bem-educada que, como ele, também não conhecia o mar. Argumentou que poderia ser interessante a experiência de dois matutos, que mal se conheciam, se juntarem para conhecer o mar – aquele mundão de água salgada que excita a imaginação de gente como nós. Por quê não? — perguntei-me. Marcamos a viagem para a sexta-feira da semana seguinte.

 ***

A estrada de Belo Horizonte até Juiz de Fora já estava quase toda asfaltada. Juscelino prometera a obra na campanha presidencial e estava cumprindo o prometido, a toque de caixa. De Juiz de Fora para o Rio, como soube por meu companheiro no caminho, o asfalto já existia de longa data. Ô estrada cheia de curvas essa! — pensei comigo. Percorremos o trecho com pouca conversa. Da minha parte, de propósito. Não queria desviar a atenção do motorista. O excesso de curvas, porém, acabou provocando um enguiço no câmbio automático do Cadillac. Ariovaldo mexe com automóveis, mas ignora como é que eles funcionam. Depois de muitas paradas e muita canseira, chegamos a Petrópolis. Já era de noitinha. Um mecânico, após tentarmos outros tantos confessadamente desconhecedores dos segredos de um hidramático, afirmou-nos ser capaz de solucionar o problema, só que era coisa demorada.

Ariovaldo não é do tipo muito falante. Assim, a viagem não estava sendo um incômodo total. Ficamos os dois ali, fiscalizando o conserto, como se estivéssemos entendendo alguma coisa. Nem para o mictório demos uma escapada. Lá pelas nove da noite o câmbio automático aceitou finalmente engatar, por obra e graça do tal mecânico, que cobrou uma fábula pelo trabalho. Automóvel chique dá muita despesa para o dono.

Prosseguimos nossa viagem ao encontro do mar. Petrópolis ficando para trás e, aos poucos, odores diferentes no ar, com seu vigor aumentando à medida que o carro avançava. O cheiro não era agradável, mas o desculpei. O mar, pensei comigo – e acho que o Ariovaldo também pensou com ele –, o mar é o mar; pode exalar o cheiro que quiser. Fomos indo e indo, até que o carro desembocou numa grande avenida de pistas largas e iluminadas, movimentada como nunca vira igual. O mar? Nada dele, ainda. Mas estava próximo, cada vez mais próximo, tínhamos certeza. Quem sabe até já nos espreitava, embuçado pela noite? O cheiro diferente, que ambos desconhecíamos, era a prova de que ele estava ali. Era preciso apenas um pouco mais de paciência.

Ariovaldo reservara dois apartamentos no Hotel Rex, na Cinelândia. Pergunta daqui, pergunta dali, acabamos chegando ao hotel por volta da meia-noite. Cansados, fomos dormir sem a menor noção do que era, ou poderia ser o mar.

No dia seguinte, o Cadillac amanheceu problemático: recusou-se outra vez a engatar. Jurei então que jamais teria um carro de câmbio automático, o que venho cumprindo, mas não sei até quando. O manobrista da garagem do hotel convocou o guincho e indicou uma oficina para os lados da Lapa, que era o oposto da orla marítima.

A manhã carioca fluía com o sol de uma tépida primavera. Nós, ali, num carrão daqueles, a reboque. Na oficina, o mecânico avisou que era coisa complicada. Pensei em sugerir ao Ariovaldo se não seria melhor deixar o Cadillac, alugar um carro de corrida e rumarmos direto para Copacabana. Acabei não falando nada para ficar solidário com o meu companheiro.

Por volta do meio-dia o carro ficou pronto. Ariovaldo saiu dirigindo por ruas que nada prometiam. Ansioso, eu olhava por todas as janelas do automóvel, em busca de uma nesga que fosse do nosso desejo. Ele, sem poder desviar a atenção do volante, perguntando-me seguidas vezes sobre o que eu estava achando da paisagem. Na verdade, ele queria saber se eu já tinha avistado o mar. Limitei-me a responder que a cidade era grande, sem dar o braço a torcer.

Nossa impaciência, muito aos poucos, foi sendo substituída pela sensação de que já-já teríamos a maravilha à vista. Idas e vindas, vindas e idas, o carro acabou desembocando no que as placas diziam ser a Avenida Beira-Mar. Fiquei meio frustrado. O Ariovaldo, também. Cadê o marzão? perguntamos cada um para si mesmo.

O Cadillac avançou. Pelo Flamengo, por Botafogo… ‘Aquele lá não é o Pão de Açúcar?’, perguntamo-nos também em silêncio. Mas um sorriso de vitória, também sem comentários, estampava-se em nossas faces. O hidramático seguiu o fluxo, obediente, como se fosse íntimo daquela caudal de carros e ônibus. Sentíamo-nos como dois cariocas, rumando para o trabalho ou para os prazeres da Cidade Maravilhosa. Confiante, o automóvel atravessou um túnel largo, com luzes acesas em pleno dia, rodou suave pela avenida à frente, embicou numa outra avenida, à direita, decidiu-se por uma rua, à esquerda, que tinha um pequeno aclive. No topo, deparamo-nos com aquela imensidão de água sem barreiras, encostando na linha do horizonte. Eu nunca vira nada igual. Ariovaldo, também. Descemos do Cadillac e ficamos ali, calados, balançando a cabeça em sinal de aprovação.

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