Confesso que jamais havia escutado um assobio igual. Fino, sibilante, penetrante, nem sei direito como defini-lo. A verdade é que passei a escuta-lo em muitas manhãs perto da minha casa, vindo dos lados do Portinho, mais forte ou mais fraco, dependendo do vento. Às vezes a pessoa assobiava alguma música da moda; outras, soltava os sons simplesmente, como um exercício de sopro, como um ensaio ou, digamos, um sinal.
Há dias, finalmente, ao sair mais cedo para descolar um peru vivo que deixaria ciscando no meu quintal até o Natal, conheci o, se podemos chamar assim, dono do tal assobio. Chama-se Leonardo, é um guri de oito anos, no máximo, muito ágil, muito vivo. Não se trata de nenhum nativo aqui de Salinas, como pensei inicialmente ao ouvir o som. É filho de um famoso advogado de Belém que tem casa de praia perto da minha. Pois eu ia descendo a rua em busca do tal peru natalino, no instante em que topei com o garoto na maior interpretação de um sucesso do Roberto Carlos. Não resisti.
– Puxa – falei – você é um craque, meu. Nunca ouvi ninguém que assobiasse tão bem.
No outro dia eu fazia o mesmo roteiro – estava difícil achar o tal peru – e o moleque se aproximou.
– Você é o cara que escreve?
– Bom – vacilei – até hoje, bem ou mal, tenho vivido disso. Mas por que você pergunta?
– É que escuto, todos os dias.
– Escuta? Escuta o que?
– A sua máquina, quando está batendo. Puxa, como é barulhenta. Você não sabia que já existe um troço chamado computador?…
– Pois é… – gemi.
Nosso terceiro papo se iniciou quase do mesmo jeito, e convidei Leonardo para ir comigo até a feirinha em busca do já lendário peru para a minha ceia. Acabamos sentando sob um coqueiro perto do quebra-mar e o guri perguntou sobre o que eu escrevia.
– Ora – vagueei – coisas…
– Que coisas?
– Sabe? – achei um bom gancho para desviar a curiosidade – estou pensando em escrever uma história sobre você.
– Sobre mim? – ele sorriu, mostrando os dentes alvos.
– É, sobre você. Em princípio eu poderia chamá-la “O Menino Assobiador”.
Pelo olhar do carinha percebi que ele havia gostado da idéia. Fui em frente.
– Mas, na verdade, para escrever você teria que me ajudar.
– Como?
– Me dizendo agora o que gostaria de fazer dentro da história. Desde que o assobio pintasse.
– Gostaria de chamar um cavalo.
– Ótimo – levantei o polegar – já estou imaginando um menino que morasse nas dunas ali na Praia da Atalaia, e que, assobiando, fizesse surgir no areal um belo corcel branco.
– Negro. Um corcel negro como o que vi num filme.
– OK, mas aí nós vamos ter que arrumar um perigo.
– Claro, para eu poder chamar o corcel.
– Grande garoto – bati no ombro dele. – O que você acha de um caranguejo gigante?
– Pode ser. E como ele iria atacar?
– Bom, teríamos que fazer você se perder no meio das dunas.
– Muito bem – Leonardo me fita, os olhos brilhando – e…
– E você escuta uma voz te avisando do perigo do caranguejo gigante. A voz de uma gaivota falante que desceria ao teu lado.
– E o que ela me diria?
– Que acabara de ver, do alto, o bicho enorme. E ele tava te procurando. De repente, pimba, aparece.
– E me pega?
– Pois aí é que está – tento ser dramático. – É então que você dá o teu fantástico assobio, o corcel negro pinta e te salva. Que tal?
– Bom, bom – ele responde. – Quando a história ficar pronta, me chame.
Nos dias seguintes não vi o moleque até que, ontem, fui caminhar num coqueiral próximo à Praia do Joca, depois de, finalmente, ter descolado o peru natalino. De repente o assobio, o familiar assobio, cortou o ar fresco da manhã. Me viro e vejo Leonardo que vinha vindo pro meu lado. Pára junto de mim e volta a fazer o que sabia, então olhando para o alto. Nisso, percebo um gavião que dava voltas sobre as nossas cabeças. A cada assobio, descia mais. Até que pousou no galho de um biribazeiro, assim perto.
– Puxa – comento – isso é muito melhor do que chamar um corcel negro.
– Talvez – o menino sorri – mas se eu te contasse que sei chamar gaviões, e que esse que sentou ali é meu amigo, ia ser moleza para você contar sua história.
Disse isso e saiu, quase correndo. Adiante estanca, assobia e a bela ave levanta em sua direção. Leonardo acena, gritando pra mim:
– Hoje volto pra Belém. Um dia quero ler a história que você tá escrevendo sobre mim. Feliz Natal, chefe.
– Feliz Natal, garoto.
Balanço a mão enquanto acompanho o guri e a ave que sumiram além do laguinho, na densa e linda claridade da manhã.
Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular.
Sr. Na década de 70 me deliciava, lendo os textos de Antonio Contente na Folha da Tarde, mas, com o tempo e sei lá mais porque, deixei de acompanha-los. Foi com prazer que encontrei esse site e novamente poder ler seus textos.
Obrigado e um abraço
Ps – Se for possível, poste alguns dos textos desta época publicados na Folha da Tarde, será bom relembrá-los.
Olá…também sou do tempo das estórias do Antonio Contente publicadas na Folha. Já conversamos pessoalmente (bar do ditinho, na r. tuiuti). É com prazer que localizei este site. Forte abraço. Matheus Jr