Cai o pano

Certamente, para mim, a cortina já havia se fechado há muito tempo, mas confesso que senti funda nostalgia, há dias, ao ler nos jornais que o lendário Cine Ipiranga, na avenida do mesmo nome, quase esquina da São João, na Capital, fechou. Está claro que essa história de “última sessão de cinema”, mesmo antes do famoso filme, é caminho certo para as nostalgias; no caso presente não poderia ser diferente. Isso pela simples e boa razão que a agora falecida sala era, praticamente, o último dos símbolos de uma época que, para este locutor que vos fala, teve seu auge entre 1957 e 1959, tempo de universidade.

O que quero dizer é que o quadrilátero que vai da Ipiranga à Praça Júlio Mesquita concentrava, na época, alguns pequenos símbolos do que de mais significativo São Paulo possuía, pelo menos para o observador atento. Vou deixar para falar do cinema por último, e imediatamente atravesso a rua para, na calçada oposta, dobrar a São João para chegar ao Brahma, restaurante que ainda existe completamente descaracterizado, mas que foi um dos lugares mais charmosos da Capital.

É retornando à calçada da Avenida Ipiranga, bem ao lado do cinema, que se tinha uma das lanchonetes mais fantásticas que já conheci: a Salada Paulista. Basta dizer que numa época em que o McDonald’s não existia ainda nem nos Estados Unidos, a citada casa já oferecia uma espécie de hamburger, preferivelmente “no prato”, que foi não só o melhor que comi em toda a minha já não curta vida, como também o mais bem servido. Pois vinha com as tradicionais batatas fritas ou a dita cuja cozida em salada untada com cinematográfica maionese mais branca do que as neves do Kilimanjaro. Com um detalhe: a casa vivia cheia, a freguesia em pé, nada de banquetas ou mesas e cadeiras.

Pois bem, no pequeno trecho em que o cine deu o seu último suspiro, nem vou falar do Metro, que virou, acho, sede de uma dessas seitas religiosas caça-níqueis. Porém sim do Mocambo, um marco na história do centro, o primeiro local onde se podia tomar um café expresso de máquina, então uma geringonça enorme, importada da Itália. Havia fila na porta, era ponto de encontro da rapaziada.

Sim, sim, disse que deixaria pro fim o falecido cinema, porque ele representou todo um capítulo da história daquele trecho de São Paulo. Tratava-se de uma sala ampla na qual, no tempo a que me refiro, só se entrava de paletó e gravata. O hall era enorme, com chão de pedras de mármore e poltronas de couro escandalosamente vermelho. Havia um mezanino e, no palco, antes de algumas sessões, se exibia um conjunto musical. Pois foi numa dessas ocasiões que vivi o momento mais marcante de antigo freqüentador da casa. Estava na platéia quando uma cantora, acompanhada de um pianista, começou a se exibir. A meu lado encontrava-se o jornalista Esdras Passaes, o mais brilhante repórter do seu tempo, prematuramente falecido antes de completar quarenta anos. Na época ele trabalhava no Shopping News, jornal do pai do hoje empresário Caio Alves de Lima, também conosco na ocasião. E foi a ele que Esdras perguntou se conhecia o escritor inglês Samuel Taylor Coleridge. Ante o sim, o repórter apontou para o palco, onde a mulher se esgoelava:

– Pois foi ele. Ao lembrar que os cisnes cantam antes de morrer, observou que certas pessoas bem poderiam morrer antes de cantar…

Bons tempos, amigos, bons tempos.        

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

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