Para meu irmão Juarez
Há poucas semanas, aqui em São Paulo, o anúncio de um show de Dori Caymmi me levou às lembranças deixadas pela música de seu pai. E a uma crônica, escrita há quase 20 anos.
Enquanto vejo, pela TV, Dorival Caymmi – alguém poderia acreditar que ele tem mais de 80 anos? – relembrar voltas e reviravoltas de sua vida, me pergunto onde teremos nos conhecido.
Nas velhas páginas da revista O Cruzeiro, lida, nos anos 50, por quase todo brasileiro alfabetizado? Ou nos antigos programas das antigas rádios do Rio e de São Paulo, freqüentemente sintonizadas no interior de Minas, quando os telefones eram raros, as pilhas só existiam no Japão e, as estradas asfaltadas, apenas nos sonhos – ou visões – do Juscelino?
Ainda que, até os dias de hoje, não tenha chegado a uma resposta que me satisfaça, lembro-me de certos fatos com a exatidão permitida pelo tempo que, cada vez mais distante, ameaça embaralhar, não passado e presente, que este imagino dominar, mas passado e passado.
Lembro-me de que aquele cidadão de voz grave, que cantava o mar – outro desconhecido do interior mineiro – e as mulheres, inventava versos tão bonitos e – aparentemente – tão espontâneos, que os memorizávamos naturalmente, quase sem querer. Como se fossem nossos.
Sei lá quantas vezes, recém-chegada à adolescência, me surpreendendo a cada verso, acompanhei a voz trazida pelo rádio: “João Valentão é brigão, pra dar bofetão, não presta atenção e nem pensa na vida. A todos João intimida. Faz coisas que até Deus duvida. Mas tem seus momentos na vida”.
Um dia, fim de tarde, sala da fazenda escurecendo, quase perguntei a meu irmão mais velho, diplomado em Dorival Caymmi, saudades da Bahia, areias de Itapoã e praias de Amaralina – como é que Deus, sabedor de tudo desde a criação do mundo, podia duvidar de alguma coisa.
Afinal, aquele João Valentão, que tinha “seus momentos na vida”, seria assim, tão poderoso? Ou aquele Caymmi seria um doido?
Caymmi é um doido. A televisão acaba de me confirmar, ao vivo, todas as cores, nestes nossos tempos cada vez mais modernos.
Um doido maravilhoso, que se permite chorar quando canta, cantar quando chora.
Um doido sincero, capaz de registrar – e incapaz de camuflar – o momento exato em que a voz grave, habitualmente firme, consegue se perder no descompasso dos olhos úmidos, do rosto crispado, da voz trêmula. Descompasso do jeito tímido de quem, em plena maturidade, ainda busca se habituar ao palco.
Que meu irmão se sinta liberado de perguntas. Hoje, cada vez mais distante dos finais de tarde, sala da fazenda escurecendo, cada vez mais distante do som saído do velho rádio alemão, de aço, herança dos tempos da guerra, passado e passado se confundindo, cada vez sinto, mais intensamente, que minhas indagações se foram.
Tenho certeza de que Dorival Caymmi veio ao mundo para virar e revirar pelo avesso as dúvidas de Deus, que não devem ser poucas.
9/6/1991
As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.