estou subindo um monte. estou escalando um monte de dificílimo acesso mas uma violenta e invencível ânsia me impulsiona para o alto. dependurado sobre o abismo que não tem fim, eu galgo com determinação, sempre para o alto. o que me espera lá em cima é o que atrai. sei que há uma porta que protege um pedaço de meu enigma. só um pedaço, sei bem. mas, para sacar do enigma a sua resposta, é preciso quebrá-lo em pedaços e começar a decifrar os fragmentos. sei também que decifrar todos os pedaços não me dará a resposta última. decifrar dúvidas não será decifrar a dúvida; mas eis aí o máximo que conseguirá minha condição de humano, demasiado humano.
chego então ao alto e agora já não cabe dentro de minha memória todo o sofrimento que foi galgar o precipício. não foi sofrimento, estou noutra esfera e agora eis que já são outras as minhas referências. só uma porta existe à minha frente.
abro-a e vejo, sentado num trono branco, de osso, um pai-demônio. um estranhíssimo minotauro que no corpo é pai mas é demônio na alma. não tenho medo mas uma fascinação demasiado cruel me faz imóvel. suores querem rebentar na minha testa. tento decifrar o olhar dessa figura que me fita com seus olhos que vêm de não consigo saber onde. a custo, crio coragem e falo:
desça desse trono porque não vou te adorar.
não estou aqui pra ser adorado. se desço do trono, você se perde a si mesmo.
o que está fazendo aqui?
eu podia te perguntar a mesma coisa. o que está fazendo aqui? vim pra presenciar aquilo que está pra acontecer.
por que motivos acontece aquilo que está pra acontecer?
não sei. quando digo que não sei, quero dizer que você não sabe. por que me pergunta coisas cujas respostas desconhece?
sempre tenho a esperança de que algo do mais fundo de mim venha à tona, livre da censura e da ignorância da vigília.
ouça isto que vou falar: você me dá mais atenção do que eu mereço.
eu silenciei. ele continuou impassível, com o olhar parado a me atravessar e a se perder atrás do que me pertence. então comecei a sentir ligeira coceira na língua. abri a boca. minha saliva fazia arder minhas bochechas. quis fechar a boca e não consegui. estava toda ferida. mexi o maxilar e senti dores fortes.
olhando à frente, vi que ele não mais estava sentado num trono, mas na escada que leva ao sótão. mas nessa escada é que eu estava!, pensei. olhei mais fixamente e percebi que ele se parecia muito comigo. que estaria acontecendo agora? foi então que descobri que ele era a minha imagem no espelho. eu estava realmente sentado na escada e me via refletido no espelho à frente. abri então a boca e me sacudi todo, assustado. todo o interior da minha boca estava ulcerado. firmei mais a vista e vi que também os lábios apresentavam-se sanguinolentos.
foi então que senti a mesma coceira no ânus. um formigamento estranho, que resultava dolorido ao contrair os esfíncteres. como eu estava nu, passei a ponta dos dedos e pude tatear cascas de feridas grosseiras em toda a região. quis me levantar mas meu corpo estava mole e pesado. no espelho confirmei o que temia: já as feridas fizeram desaparecer meus lábios e todo o rosto trazia agora manchas amarelas com os olhos roxos no centro. também as feridas do ânus se tinham alastrado e já se me fazia terrivelmente doloroso continuar sentado. mas era fato que também não conseguiria me levantar, tão pesado, inerte e incapaz eu me sentia. percebi que se não me mexesse doeria menos. senti todavia que, à medida que as pústulas se espalhavam pelas nádegas, meu corpo ia se integrando à escada, acomodando-se às saliências e vãos.
e minhas mãos, como estariam? para espanto, notei que conservavam a sua cor rosada, como se pertencessem a outro corpo que não o meu. da boca e do ânus é que irradiava a pestilência. e já toda a cabeça estava tomada: os olhos inchados e molhados de um verde gosmento, o nariz enegrecido e saliente, as orelhas rachadas e esfarelantes, os cabelos empastados por um pus que escorria pelos ombros.
espichei as pernas na tentativa de ver meus pés. algo como patas agudas de um réptil. minhas mãos principiavam agora a desoladora metamorfose. esverdeadas e grudentas.
estou voltando às origens da vida!
nada havia a apodrecer então. olhei-me a custo no espelho. os olhos quase fechados permitiam que eu divisasse a extensão dos danos. queria que ele estivesse lá novamente, queria estar de novo frente a frente com meu demônio-eu. não. à minha frente o reflexo do terror em que eu me tinha transformado. era comigo mesmo que haveria de ser travado o diálogo.
sempre tive medo de que isto acontecesse; principiei. foi a partir da leitura daquele romance grego.
será este o tamanho de sua culpa?
inda que seja o tamanho da minha culpa, será também o tamanho da minha libertação.
quem fala em libertação está admitindo a culpa. quem admite a culpa, admite o pecado.
estou condenado a conviver com esta moral. fui amamentado com este código. não admito esta transformação se não como algo simbólico. sei que tudo isto se passa dentro de um sonho.
mesmo dentro de um sonho, o que interessa é que você está criando esta purificação como saída.
prefiro este sonho à loucura!
e se não for sonho?
se não fosse para ser sonho não se chegaria a este ponto. apenas, de vez em quando, a boca cheia de aftas ou o ânus com pequeninas ulcerações.
por que a boca e o ânus?
esta pergunta é minha. eu não saberia responder mas sei perguntá-la.
você está muito seguro de que seja um sonho. transformado que está nessa coisa colada à escada, inerte, como um ancestral do que poderia ser humano, um réptil, um peixe, procure suas mãos e seus pés!
com efeito eu era já um amontoado de carnes apodrecidas, um gigantesco berne purulento.
uma criatura tubo, por onde entra o desvario da razão e sai o vômito da obra enlouquecida. e pensa que tem boca e ânus! procure a entrada e a saída!
com efeito eu já não me sentia com boca e ânus. apenas um pólipo imenso, podridão desgovernada com um orifício no lugar onde podia florescer um cérebro, uma boca-ânus ávida, ávido de tragar, de morder, de beijar, de lamber, de sugar, de engolir.
e, antropófago e visceral, enchi-me de volúpia e avidez e voracidade e avancei resoluto até aquela coisa dentro do espelho, voando na densidade do ar, e engoli toda aquela montanha de sarna e câncer, meu reflexo no espelho.
aquietei-me. porque me sentia agora preenchido, alimentado, e, principalmente, sem um desagradável interlocutor que me viesse cobrar por complexo de culpa.
mas por que pensei em complexo de culpa?
agitaram-se-me as entranhas como o vulcão que prepara o parto de fogo.
eu me resigno a conviver contigo, meu outro eu, meu pai-demônio, ressonância de todos os condicionamentos que o mundo fez crescer dentro de mim. a partir dessa escravidão, atingirei minha liberdade. não vou parar de pensar, sei que não vou ficar louco, um sonho pode dar pedaços de resposta!
e vomitei. vomitei ou defequei. abriu-se o orifício boca-ânus e, lentamente, devolvi aquilo que devorara. antes que tivesse saído de mim o produto, eis o que pensara meu cérebro entorpecido: se fosse uma golfada aflita, seria vômito. se fosse um despejar lento, seriam fezes.
mas que bola vermelha é essa que saiu de dentro de mim? como num parto!
brilhava rubro e molhado à minha frente, envolto em água e sangue, um imenso feto dentro de rósea placenta. rebentou-se a placenta e eis que Eu estou dormindo à minha frente, com o meu tamanho de hoje, com a minha idade de hoje, dentro do meu sonho de hoje.
comecei eu, de fora, molécula macróbia, criatura de um só significativo orifício, comecei a chorar, convulsionado.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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