Gregory Peck interpretou muitos personagens dignos, altivos, em sua belíssima carreira. Há o janota que parece covarde de Da Terra Nascem os Homens; o militar determinado de Os Canhões de Navarone; o advogado bom pai, bom marido, mas temeroso, de Círculo do Medo; o jornalista que leva a princesa Audrey Hepburn para seu apaertamento e não encosta nela porque ela estava sonadinha, de A Princesa e o Plebeu – e tantos outros. Mas dois deles, em especial, são extremamente marcantes.
O Philip Schuyler de A Luz é para Todos/Gentlemen’s Agreement, de Elia Kazan, 1947, e o Atticus Finch de O Sol é para Todos/To Kill a Mockingbird, de Robert Mulligan, 1962, são dois dos personagens mais fascinantes que o cinema americano já produziu.
(Os dois filmes estão disponíveis no Brasil em DVD.)
São os dois, cada um à sua maneira, o protótipo ideal do ser humano bom, a personificação dos melhores valores que a humanidade já produziu – justiça, honestidade, hombridade, respeito aos outros, em especial os diferentes de você mesmo.
Quando começa A Luz é para Todos, o escritor Philip Schuyler interpretado por Gregory Peck realmente acredita que vai conseguir, sem cutucar em gigantescas feridas ou criar novas, o seu intento: fazer-se passar por judeu – para depois relatar a experiência, em uma publicação de intelectuais liberais – em uma sociedade intrinsecamente racista. O racismo, a intolerância, a indestrutível divisão de classes sociais distintas, toda a dura e feia realidade vai aparecendo à sua frente, ameaçando a formação humanista que ele dá ao filho, destruindo a admiração que sente pela mulher que escolheu, infernizando seu dia-a-dia. O ator vai dando a seu Philip Schuyler a expressão de dor, desencanto, frustração – mas nela se mescla a cara da determinação, da pura e simples incapacidade de se deixar vencer.
Assim como o nova-iorquino intelectual Philip Schuyler do filme de Kazan, o advogado simples, interiorano, de uma cidadezinha do Sul profundo de O Sol é para Todos é viúvo, e assim carrega sozinho o peso e a responsabilidade de passar aos filhos os valores do bem em meio a uma sociedade degenerada. Atticus Finch é, nas conversas diárias com a filha de uns dez anos e o filho de uns seis, assim uma espécie de David do bem contra todo o Golias de um mundo racista, repressor, que privilegia as aparências e menospreza o conteúdo.
A cena em que Atticus Finch deixa o tribunal no qual defendeu um negro acusado de estuprar uma branca, diante do júri de brancos, é de arrepiar; era mesmo impossível que a Academia não desse o Oscar a Gregory Peck. Os negros das galerias se levantam à sua passagem, e o mais velho e respeitado deles diz para a filha do advogado que não conseguiu obter justiça: “Levante-se; seu pai está passando”.
Gregory Peck emprestou sua altivez a Philip Schuyler, a Atticus Finch, e o cinema ficou maior – assim como ficou um pouco maior a crença de muitos espectadores de que nem tudo está perdido.
A historinha por trás do texto
Eu era editor-chefe do portal de O Estado de S. Paulo, o estadao.com.br, quando Gregory Peck morreu, no dia 12 de junho de 2003. Trabalhava feito um condenado, muitas longas horas por dia, e sempre tinha mais umas 37 coisas para fazer a cada momento, mas, depois que demos a notícia da morte do grande ator, consegui a proeza de deixar as outras obrigações de lado para fazer o textinho aí acima – minha humilde homenagem a ele. Fiz na redação mesmo (sempre preferi escrever meus textos em casa, podendo consultar meus livros, meus alfarrábios), no meio do trabalho, as pessoas pedindo orientação para isso e aquilo e aquilo outro, quase de memória, sem muita consulta, pesquisa.
Pensando bem, acho que eu deveria ter feito mais isso, na vida. Ter escrito mais, em vez de dedicar todo o tempo a melhorar os textos dos outros.
É um texto pequenininho, sem qualquer importância, mas gosto dele, e quis que ele constasse do site.