No lado A, duas peças de Erik Satie – Satie, o compositor erudito, que exerceu influência sobre Debussy, Ravel e Stravinsky, um músico sofisticado, amigo de Jean Cocteau e Pablo Picasso, autor de uma obra que surgiu em meio às experiências impressionistas e cubistas na refinada França do início do século. No lado B, sete curtas composições de Scott Joplin – Joplin, negro do então pouco desenvolvido Sul dos Estados Unidos, filho de um ex-escravo, e que morreria num asilo de doentes mentais, autor de ragtimes, a música que era considerada pela fina sociedade norte-americana como vulgar e imoral, música de divertimento, feita para ser tocada em bordéis, bares e casas de jogos.
Uma estranha mistura, pode parecer à primeira vista. No mínimo, uma mistura original.
Mas originalidade é o que se pode esperar de um disco de Clara Sverner, uma das mais conceituadas e conhecidas pianistas eruditas do Brasil. Com uma sólida formação clássica, tendo sido discípula de José Kliass, com curso de aperfeiçoamento em Genebra (onde ganhou medalha de ouro em 1957) e passagem pelo Mannes College of Music de Nova York, prêmios e reconhecimento internacionais, essa paulista radicada há muitos anos no Rio de Janeiro tem uma discografia recheada de originalidades.
Sem apego a repertório exaustivamente testado
Instrumentista que jamais foi apegada a um repertório pronto, acabado, já exaustivamente testado por outros músicos (o diretor do Conservatório de Genebra, depois de elogiar seu talento, advertiu-a de que ela gostava de tocar “muita coisa moderna”), Clara Sverner foi, por exemplo, a primeira brasileira a gravar aqui obras dos eruditos contemporâneos Alban Berg e Anton Webern (em seu terceiro LP, de 1974). Foi também a primeira instrumentista a gravar um LP só com obras do ainda pouquíssimo conhecido, entre o grande público, Glauco Velásquez (1882-1914), um carioca nascido em Nápoles (em seu quarto LP, de 1977). Foi dos pouquíssimos instrumentistas eruditos a gravar LPs só com música popular brasileira – primeiro no LP Rio de Janeiro – Álbum Pitoresco-Musical, e depois nos dois volumes de O Piano de Chiquinha Gonzaga, lançados, em 1980 e 1981, com um extraordinário sucesso (cada um dos dois LPs vendeu cerca de 15 mil cópias, quando em geral um disco de instrumentista erudito no Brasil não chega a vender mais que duas mil cópias).
Enquanto a “Enciclopédia de Música Brasileira” creditava ao compositor Eduardo Souto (nascido em São Vicente, em 1882) cerca de 15 peças, Clara Sverner partiu para um paciente trabalho de pesquisa, e conseguiu encontrar as partituras de mais de 300 peças só para piano; o resultado desse trabalho de pesquisa saiu no LP Clara Sverner interpreta Eduardo Souto, lançado em 1982, ano do centenário do nascimento do compositor. Só que o disco não aproveitou a ocasião e os festejos – ao contrário, como disse a Clara Sverner, se ela não tivesse lançado o disco, pouquíssima gente neste país se lembraria que se completavam então cem anos do nascimento do compositor.
A originalidade, o papel de pioneira e desbravadora de Clara Sverner voltariam a ficar patentes com o seu penúltimo LP, Clara Sverner e Paulo Moura, de 1983, quando a instrumentista veio tirar de um absurdo, incompreensível limbo junto às gravadoras o saxofone extraordinário de Paulo Moura, cuja última gravação solo havia sido em 1975, pelo RCA.
Esse encontro do piano erudito com o saxofone jazzístico, promovido no LP de 1983, havia sido primeiramente imaginado por Clara Sverner para se realizar com Victor Assis Brasil. Em 1980 os dois já haviam inclusive escolhido parte do repertório do disco que gravariam juntos – mas o projeto foi destruído pela prematura morte do saxofonista, em 1981. Clara já havia começado a tocar em dueto com Paulo Moura quando, em 1982, iniciou nova parceria, justamente com o irmão gêmeo de Victor, o pianista erudito João Carlos Assis Brasil, aluno de Jacques Klein, com cursos de aperfeiçoamento em Paris, Viena e Londres, e uma sólida reputação como concertista em vários países europeus.
Mais pontos em comum do que se poderia imaginar
Clara e João Carlos Assis Brasil fizeram alguns recitais em São Paulo e no Rio, apresentando peças para dois pianos, ou para um piano a quatro mãos. “Encontrar obras para dois pianos requer tempo; é preciso vasculhar o repertório dos compositores”, dizia Clara. Em meados de 1983, surgiu o plano de gravarem juntos este disco que agora chega às lojas, Joplin – Satie, pelo Selo Angel da EMI-Odeon.
Por que Satie e Joplin em um único disco? Segundo Clara, os dois compositores foram escolhidos “porque ambos têm peças que possuem humor, dança”. E, de fato, há mais pontos de contato entre as obras de dois compositores tão distantes e diferentes do que se poderia pensar. Não é apenas porque Satie (1866-1925) e Joplin (1868-1917) foram contemporâneos.
O poeta Augusto de Campos, no seu texto do encarte do LP Joplin – Satie, fala de acasos e contatos, e afirma: “A saúde das artes exige, de quando em vez, para o ar rarefeito das elucubrações e das pesquisas sem tréguas, o oxigênio generoso da intuição e da informalidade. Daí a dialética interpenetração dos avessos que a música experimenta, para além dos rótulos e compartimentos”.
Interpenetração dos avessos. O popular Joplin aspirava um lugar de destaque, dentro da música “culta”, para o seu ragtime – e foi o fracasso de sua ambiciosa ópera “Treemonisha” que agravou a depressão nervosa que o levou ao hospício. O erudito Satie gostava de se divertir com a música dita séria – e inclui, na versão orquestrada da peça “Parade” (apresentada neste LP em versão para dois pianos), ruídos de sirenes, tiros de revólver e máquina de escrever.
Um trecho da composição “Parade” é um ragtime, o estilo de que Joplin foi o grande expoente. Foi o primeiro ragtime composto na Europa como música de concerto.
Satie, aliás, como lembra Augusto de Campos, gostava de tocar ao piano os ragtimes de Jelly Roll Morton. Morton, sabe-se, foi profundamente influenciado por Scott Joplin.
Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde em 19 de março de 1984