Numa de suas viagens a Angola, uns quatro anos atrás, quando estava numa cidade que os colonizadores portugueses chamavam de Nova Lisboa, e hoje se chama Uambo, o compositor Martinho da Vila foi procurado por um jovem músico angolano, “um menino ainda”, como ele diz hoje. Ficaram amigos. Quando Martinho voltou a Angola, mais tarde, com uma ilustre caravana que incluía Chico Buarque de Holanda, Edu Lobo, Dorival Caymmi e Clara Nunes, no chamado Projeto Calunga, o diretor Fernando Faro convidou o jovem músico angolano para participar dos shows apresentados pelo grupo em várias cidades do país.
Além de ser hoje um dos mais importantes compositores modernos de Angola, Waldemar Bastos é, segundo Martinho da Vila, um grande artista de palco e um excelente violonista. Sua participação nos shows foi muito importante.
O contato de Waldemar Bastos com os músicos brasileiros frutificou. Há poucas semanas, Waldemar Bastos veio ao Brasil e gravou um disco que a EMI-Odeon lança agora, logo após o carnaval. É interessante notar que esse LP é o primeiro da carreira do músico – mesmo porque Angola não tem fábrica de discos (só agora estão surgindo os primeiros estúdios de gravação do país, ainda não muito bem equipados).
Se Angola é um país pobre de recursos, o Brasil – sétimo maior produtor de discos do mundo – é igualmente pobre no contato com a música de Angola, um país culturalmente muito ligado ao nosso, não só por causa da colonização portuguesa, como também pela influência do grande número de escravos vindos de lá para cá. Surpreendentemente, este é apenas o terceiro disco de músicas angolanas lançado no Brasil (o primeiro, de 1981, foi Angola, Folclore e Canções Tradicionais, do Estúdio Eldorado; o segundo, lançado pela RCA no ano passado, O Canto Livre de Angola, também resultou de uma iniciativa de Martinho da Vila, que trouxe ao Brasil um grupo de artistas angolanos e produziu o LP gravado ao vivo durante uma apresentação no Rio).
O LP de Waldemar Bastos (o titulo, absolutamente explícito, é Estamos Juntos) demonstra elogiáveis cuidados de produção – a cargo de Homero Ferreira e Novelli. Há participações especiais de padrinhos respeitáveis, Chico Buarque de Hollanda, Martinho da Vila e João do Vale. Ao contrário, no entanto, do que aconteceu com o segundo LP de João do Vale, lançado pela CBS em 1982, e com o terceiro LP de Adoniran Barbosa (EMI-Odeon, 1980), em que os dois compositores foram abafados pelas diversas participações especiais de superastros, e acabaram se transformando em meros coadjuvantes de seus próprios discos, neste Estamos Juntos a estrela maior é o próprio Waldemar Bastos.
Os cantores brasileiros têm participações discretíssimas: Chico canta alguns dos versos de “Lubango”, de Waldemar Bastos; João do Vale recita uma tradução para o português da letra de “Humbiumbi yangue”, tema folclórico angolano cantado em quimbundo, o dialeto do compositor, e o segundo mais importante do País; e o amigo Martinho da Vila limita-se a fazer uma (bela, macia e tocante) segunda voz no refrão de “Velha Chica”, também de Waldemar Bastos. Foi um esforço consciente, estudando, para não ofuscar o dono do trabalho: “O Homero Ferreira e nós planejamos isso mesmo”, diz Martinho “Não queríamos aparecer demais. Nosso interesse era participar no sentido de dar uma força, recomendar o compositor ao público brasileiro”.
O mesmo cuidado demonstrado na definição da participação dessas estrelas fica claro na escolha dos músicos que acompanharam o cantor e compositor angolano. Em vez de escudar-se nos argumentos de que a indústria fonográfica está em crise e tem de economizar, os produtores do LP cercaram Waldemar Bastos por alguns dos grandes nomes da música brasileira. Dori Caymmi e João Donato assinaram arranjos, respectivamente, de cordas e sopros. O co-produtor Novelli toca baixo na maioria das faixas. Há participações de gigantes como Paulo Moura no sax-soprano, Robertinho Silva na bateria, Zeca Assumpção no baixo, Márcio Montarroyos no trompete, e o magnífico Jacques Morelenbaum no cello. Já a base rítmica ficou por conta de outro músico angolano, que veio ao Brasil especialmente para participar do disco, Fontinhas do Reco-Reco.
Das oito faixas, duas são do folclore angolano, e as outras seis do próprio Waldemar Bastos. Todas elas são uma impressionante demonstração de como são próximas as raízes das músicas de Angola e do Brasil – e de como é absurdo que conheçamos tão pouco de uma cultura tão ligada à nossa. Em letras simples, despojadas, absolutamente despretensiosas, o compositor fala de temas e cenas do cotidiano, como a vida dos vendedores ambulantes, as festas populares, o trabalho dos pescadores, a beleza dos animais e das plantas. E saúda a independência de seu jovem país, na emocionante “Velha Chica”.
É uma agradável e bem vinda surpresa, este Estamos Juntos. Depois de conhecer o trabalho de Waldemar Bastos, só resta esperar que essa troca de experiência entre artistas brasileiros e angolanos prossiga e renda novos discos como este.
(*) A resenha acima foi publicada no Jornal da Tarde, em 2 de março de 1984.
Fazia um bom tempinho que não postava aqui meus velhos textos – e postar velhos textos foi a razão pela qual fiz este site. Como diz a abertura da apresentação: “Este site foi criado no final de novembro de 2009 para reunir alguns textos que escrevi ao longo da vida. Agrupa também textos de amigos meus. E, já que o espaço existe, vou colocar aqui o que me der na telha escrever de agora em diante – queixas, reclamações, comentários, pau no que acho absurdo.”
A questão é que há tantos absurdos neste país desgovernado pelo lulo-petismo que o site acabou sendo tomado por queixas, reclamações.
Como dizia o Ivan Ângelo, então secretário de redação, para o Oswaldo de Camargo, encarregado de revisar os textos mais importantes – editoriais, artigos – do velho Jornal da Tarde: “E aí, poeta, perdido na prosa?”
Julho de 2011