O violonista Baden Powell, todos sabem, é um dos maiores (se não o maior) do País. É tido por muita gente boa como um dos melhores de todo o mundo. É respeitado e aplaudido aqui, e também na França, na Alemanha, na Itália. Pois, Baden Powell resolveu cantar. E o violonista genial é um péssimo cantor. E – pior ainda – o péssimo cantor ofusca o instrumentista, toma-lhe o espaço, esconde-lhe o brilho.
Não é de hoje. Seus dois trabalhos anteriores (Baden Powell, álbum duplo gravado ao vivo no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, em l979, e Nosso Baden, de 1980, todos lançados pela WEA), já mostravam esse grande equívoco. E o equívoco prossegue com o disco que a WEA acaba de lançar (em fevereiro de 1981), De Baden para Vinícius, com faixas gravadas ao vivo durante show do violonista no Teatro Clara Nunes, no Rio, nos meses de julho e agosto do ano passado.
É bem verdade que, no Brasil muito mais que em outros lugares, é dura a carreira dos instrumentistas. Os shows – e os discos – apenas instrumentais são bem menos procurados e fazem bem menos sucesso que os cantores ou cantoras. E conjuntos basicamente instrumentais, como, por exemplo, o novo e brilhante A Cor do Som, são levados a cantar também, além de tocar. Os principiantes – como Otávio Burnier e Túlio Mourão, apenas para citar alguns dos mais promissores – acabam tendo que cantar algumas faixas dos seus discos, porque assim fica mais fácil a divulgação de sua obra através do rádio, por exemplo. (E, no caso dos dois instrumentistas citados, a coisa fica ainda mais irônica, já que cada um dos dois teve a oportunidade de gravar seu primeiro disco, pela PolyGram, na série “Música Popular Brasileira Contemporânea”, que se propõe justamente a divulgar a nova música instrumental feita neste país de sabiás).
E até mesmo instrumentistas de prestígio e sucesso como Egberto Gismonti às vezes botam a voz para fora, em seus discos.
Mas esta é uma situação que, parece, começa agora a mudar. Pelo menos, há sinais disso. A própria série da PolyGram, dedicada aos instrumentistas, é um sinal de que começa a haver maior aceitação da música instrumental. O sucesso dos últimos festivais de jazz é outro. E as próprias rádios já dedicam maior espaço à música brasileira instrumental.
E, de qualquer forma, Baden Powell não é um iniciante. Ao contrário. Além de veterano, ele é um dos poucos instrumentistas brasileiros de fama nacional, ampla e indiscutível.
Assim, fica difícil entender esse equívoco de Baden trocar o instrumento no qual é mestre pela expressão de cantor, quando há centenas de cantores muitas e muitas vezes melhores que ele.
Neste De Baden para Vinícius, existe apenas uma faixa em que o brilho do violonista aparece nítido, claro, forte: é aquela em que Baden toca apenas, de boca fechada, a belíssima “Se todos fossem iguais a você”, de Vinícius e Tom Jobim. Ali o instrumentista está inteiro, e genial, como nos seus discos antigos. Mas é apenas ali – e, de resto, na primeira faixa do segundo lado, em que Baden toca “Serenata do Adeus” (também de Vinícius), enquanto a voz gravada do poeta declama “O Poeta e a Lua”.
Mas, nesse mesmo que é um dos dois únicos belos momentos do disco, o ouvinte será um pouco roubado: se tentar acompanhar a leitura que o poeta faz de seus versos pelo texto do encarte que acompanha o disco, o ouvinte perceberá absurdos erros na transcrição. Assim, quando o poeta declama “Nos ventos do mar perpassa um salso cheiro de lua”, o que se lê no encarte é o ininteligível “Os ventos do mar perpassam/ o sol cheiro de lua”. E há mais. Os versos “A vinda lenta do espasmo/Aguça as pontas da lua./ O poeta afaga-lhe os braços/ E o ventre que se menstrua” viram o seguinte, no texto do encarte: “A vinda lenta do espasmo/Aguça as pontas da Lua./ O poeta afaga-lhes braço/ O ventre que se destrua”.
Nas demais faixas do disco, há sempre o mesmo mau cantor, de voz tímida, acanhada, fraca e – o que é pior – feia e desagradável, e que não consegue controlar a respiração, deixando gravados ruídos incômodos, amadorísticos. Ao fundo, está lá o sempre competente som do violão – mas é preciso aguçar os ouvidos para percebê-lo, para separá-lo da voz do cantor iniciante.
O disco é todo uma homenagem a Vinícius de Moraes – que havia morrido dias antes da apresentação do show onde a gravação foi realizada. E, provavelmente, por isso, o público aplaude intensamente as feias interpretações de “Velho Amigo”, “Bom dia, Amigo”, “Samba em Prelúdio”, “Tempo Feliz”, “Apelo”, “Além do Amor”, “Deixa” e “Formosa”, todas feitas em parceria por Baden e Vinícius. Sobram aplausos, inclusive, para quando Baden altera a letra de “Samba em Prelúdio” e canta: “Volta, Vinícius,/ Os meus braços precisam dos teus,/ Teus abraços precisam dos meus/(…) Sem você, meu parceiro./Eu não sou ninguém”.
Uma gravação feita ao vivo nem sempre é capaz de levar para o ouvinte do disco a emoção do momento, no caso a emoção existente no teatro repleto de gente que sentia a morte do poeta.
Os ouvintes merecem um Baden Powell melhor, como o Baden Powell inesquecível de discos como Tempo Feliz ou Mundo Musical de Baden Powell, gravados em 1966. (Ainda mais quando se lembra que um disco já está custando, em algumas lojas do centro, 700 cruzeiros).
E o poeta Vinícius merece – sem dúvida – uma homenagem melhor.
Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde de 27 de fevereiro de 1981, com o título “Baden Powell, o mau cantor que esconde o violonista brilhante”