A primaveril passarinha

De pé, vítimas do anonimato, pindéricos da terra. De pé, de pé. Tipos como nós, como eu, nunca teremos na ponta da língua o doce sabor da celebridade e da fama. Bem podemos usar à vontade sapatos de camurça.

E já me embalo a contar a história dos sapatos. Hoje, o actor inglês Michael Caine nem sequer precisa de uma perna às costas para fazer de velho. Mas que novo que ela era nos anos 50! Os americanos raptaram-no, num Rolls-Royce de ouro, e puseram-no num hotel de Sunset Boulevard, em Hollywood. Veio visitá-lo John Wayne, então epítome da celebridade, nesse tempo em que ser actor era mais importante do que ser presidente. E ao conto acrescento um ponto: veio visitá-lo de helicóptero. Queria elogiá-lo. E anunciar que o cinema ia ser para Caine uma terra de leite e mel. E foi.

Wayne queria também dar-lhe um conselho. Ouçam a estranha, rachada e íntima voz de Wayne: “Michael, há dias, num restaurante, fui à casa de banho. Fecho os olhos e começo a aliviar-me. Um tipo ao lado, olha e grita, ‘és o John Wayne, não és?’, volta-se, e ao virar-se para mim, mija-me os sapatos todos. Eram de camurça e fiquei com os pés encharcados. Agora, que vais ser famoso, nunca mais uses sapatos de camurça.”

A Michael Caine, tão classe operária que ele era, como o eram Sean Connery, Peter O’Toole e Richard Burton, ninguém lhe mija para os pés. Converteu-se num modelo de elegância, espelho da aristocracia inglesa. Não obstante – se permitem a selecta adversativa – não o vejo, ao contrário de uma legião de meios famosos, aproveitar-se da celebridade, cevando-se no privilégio. Também não quero exagerar e dizer que Caine seja um Luís VIII, fidelíssimo rei de França.

Explico-me. Luís VIII não foi só rei de França. Invadiu a Inglaterra, tomou Londres e foi proclamado soberano, num rotundo e real desmentido que o raio da ilha não pode ser invadida e que ninguém arreia nos saxões. Mas não é do Brexit que estou a falar. Quero é gabar a coragem física, coragem de século treze, de Luís VIII. Veio de Inglaterra e desceu ao sul de França a chacinar cátaros e albigenses. Hereges, enfim. Não estamos, portanto, a falar de um menino, mas de um gaulês rijo, um jogo de braços com a espada que rivalizaria com o jogo de pernas de Platini ou Zidane.

Tinha era uns intestinos de menino, e num tempo em que as pensões ainda não eram a águas correntes, frias e quentes. No regresso, aviados os albigenses, deu a Luís VIII, a meio caminho, uma diarreia que valha-nos Nosso Senhor. Tentaram tudo os físicos de sua alteza. Até que, conselho de John Wayne ou não, alguém alegou que a francamente exagerada continência sexual do soberano era a má razão daquele real e tão tumultuoso esvaziamento rectal. Atacava-lhe os nervos e os nervos, já se sabe, é da nascente à foz.

Os solícitos nobres descobriram uma virgem, para o curar. Lavaram-na, perfumaram-na e meteram-na no leito do agora fétido Luís VIII. Assim a meteram, assim a tiraram. O bravo rei, fiel a Branca de Castela, sua mulher, rainha a quem fez 14 filhos, em 26 anos pontuados pelas estocadas de tantas guerras, recusou com bons modos a nua virgem, negando-se a fazer outonal tão primaveril passarinha. Fiel à rainha e fiel ao mandamento do seu Deus, não cobiçou outra mulher, esvaiu-se e morreu.

A nós, alheios às delícias de vida dos que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando, resta-nos ser as figuras pequeninas, escondidas ao fundo da sala, a rirmo-nos, em memórias e crónicas, dos seus sapatos de camurça, da sua escorraçada virgem.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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