Quem dá o que tem no bolso…

Ela tira os óculos, que não por acaso lhe ficam bem, solta o cabelo apanhado, vira-se em valsa lenta, boca semiaberta, num sorriso que a ponta da língua interrompe tocando no canto direito do lábio superior. Distraído a abrir uma garrafa de “pretty good rye”, Bogart, que já estava a fazer conversa com ela há dez minutos, levanta a cabeça e, como se acabasse de ver nascer Vénus, solta o mais vivaldiano “hello” da história do cinema.

E agora pergunto, se nunca correram um estore, que raio de vida é a vossa? Corre-se um estore, em The Big Sleep, filme a preto-e-branco, de 1946. Quem corre o estore é uma livreira em que deviam pôr os olhos os patrões das livrarias Bertrand, FNAC, Almedina, Ler Devagar, até mesmo da fabulosa Lello. Tem vinte e um anos, vende livros e, se não sabe tudo, sabe pelo menos muito sobre edições raras. Uma coisa temos garantida para a eternidade: nós é que nunca saberemos o nome dela. Nem William Faulkner, nem Raymond Chandler no guião, nem Howard Hawks, o realizador, lhe deram um nome. Quem devia ter o nome grande, que a história do cinema ainda não lhe reconheceu, é Dorothy Malone, a mulher morena que dá aquele vagaroso corpo a essa menina livreira.

Bogart vem da livraria em frente e entra na ACME Book Shop de Malone. Ele é um detective. Falam e floresce entre os dois aquele indesmentível interesse humano que nos protege de um húmido dia de chuva. Bogart vai ter de fazer uma espera e em vez de se ir molhar lá fora, tira do bolso uma garrafa de uísque americano, com que podem molhar-se, ela e ele, no calor da livraria. É então que Dorothy Malone, com medido vagar, fecha a porta e corre o estore como mais ninguém na vida há-de correr um estore, numa rotação em que a deliciosa velocidade angular do corpo dela contrasta com a firme vontade do rosto: “Looks like we’re closed for the rest of the afternoon.”

Fala-se muito, e com menosprezo, de quem tem um passado. Tenho uma teoria: “Ai de quem nada tem a esconder.” A livreira da ACME corre o estore sabendo que está a construir o seu passado. É uma tarde só – one afternoon stand –, mas é o segredo esplêndido de um encontro bom. É que não há sequer um grão de insensual inquietação de futuro em toda essa cena de que Dorothy Malone é senhora e rainha. Bogart, “hello!”, oferece apenas o que tem no bolso.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

The Big Sleep no Brasil é À Beira do Abismo.

 

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