Um beijo

zzmaureen 720

O beijo que Mau­reen O’Hara e John Wayne deram em The Quiet Man é o arqué­tipo de todos os bei­jos. Os do cinema e os que na vida mais se pare­cem aos do cinema.

Se não o viram, ouçam-no. Há na Irlanda uma tem­pes­tade homé­rica, relâm­pa­gos a des­pe­da­çar a escu­ri­dão e um homem, o ame­ri­cano e retor­nado Sean Thorn­ton, entra na casa, que uma lareira aquece. Vas­soura no chão, cin­zas var­ri­das ao lado, denun­ciam pre­sença intrusa. Um daque­les ven­tos noc­tur­nos, que só um grande filme român­tico pode dar-nos, faz bater estron­do­sa­mente as por­tas. A intrusa, Mary Kate, blusa azul, saia ver­me­lha, esconde-se para pro­te­ger o que tal­vez (e este “tal­vez” só aqui está por honra da firma) muito quer dar. Sean, a que o rea­li­za­dor, John Ford, empres­tou o corpo de John Wayne, solta um grito de guerra e, à pedrada, parte um vidro para fazer sair da toca quem, escondendo-se, ele sabe que, de muito se escon­der, deve­ras se quer mos­trar. O vidro estilhaça-se e faz sal­tar a mulher, que o reflexo de um espe­lho nos dá a ver a nós e a assusta a ela. Tenta fugir. Quase con­se­guia, não fosse o rápido braço direito do homem a puxá-la para den­tro num movi­mento redondo, quase um passo de valsa, atraindo a si o indo­má­vel corpo e a ruiva cabe­leira da fogosa irlan­desa que daria pelo nome de Mary Kate, se não soubéssemos que é Mau­reen O’Hara. E beijam-se.

Beija-a ele a ela, mas bem vemos que o beijo que o vento, a chuva, o tor­men­toso Inverno tão roman­ti­ca­mente subli­nham, já ela o dese­nhava desde o prin­cí­pio do filme. É o que John Wayne, depois de Mau­reen O’Hara o esbo­fe­tear pelo atre­vi­mento, lhe diz, que há obses­sões de que um homem não se livra com faci­li­dade, como a visão de uma mulher cami­nhando pelo cam­po com o sol a bater-lhe no cabelo ou a ajoelhar-se na igreja, o rosto como o de uma santa.

É esse o beijo de Innis­free. Deram-no John Wayne e Mau­reen O’Hara, num dos melho­res fil­mes deles e de John Ford. Evoco o filme e o beijo — que Spi­el­berg evo­cou tam­bém com gra­ci­o­si­dade e humor no “E.T.”. E ama­nhã, se eu fosse de ir à igreja como ia John Wayne para a ver, ajo­e­lhar-me-ia à espera que me apa­re­cesse o “rosto de uma santa”, Mau­reen O’Hara, actriz irlan­desa e for­di­ana, que de santa, Deus a aben­çoe, nada tinha. “Saint indeed.”

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

The Quiet Man no Brasil é Depois do Vendaval

E, aqui, Anélio Barreto visita Innisfree. 

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