O morto de domingo

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Hitchcock matou muita gente. Não me venham dizer que isso não faz dele um criminoso da pior espécie.

O rotundo realizador britânico conta ter feito uma incerta maldade aos seis anos de idade. Talvez tenha sido, digamos, o precoce assédio a menina inocente. O que interessa é que o pai o mandou, com uma nota escrita, à esquadra local. Era, e divago sonhadoramente, um tempo em que os pais podiam confiar um filho a uma esquadra. O guarda de serviço leu a nota e fechou-o cinco minutos numa cela. Depois, sussurrando-lhe um “Isto é o que fazemos aos rapazinhos maus!”, mandou-o em paz.

Digam-me agora se, com um sinistro aviso destes, teriam os leitores ido em paz? Nem Hitchcock foi. Encheu os filmes de perversas loiras frias, com quem desejaria ter-se fechado em escuros calabouços por mais de cinco minutos, e dedicou-se, com minúcia, à arte de matar pessoas sem deixar rasto. Os filmes de Hitchcock, na sua torcida e ímpia maldade, são sobretudo o veículo de uma advertência amoral: “Mantém-te fora da prisão.” Como não quero que baixem os vossos padrões éticos, só peço que vejam um filme – basta The Trouble with Harry” –, para comprovarem o horror moral que é vermos quatro pacatos cidadãos da dulcíssima e outonal Vermont a manusear, esconder numa banheira, enterrar e desenterrar cem vezes o fresco cadáver de Harry.

A associação criminosa que é o cinema americano deu-lhe um prémio, está claro. São coisas como esta que justificam a moralíssima repugnância que o PCP e o Bloco têm à imperial América. O Life Achievement Award consagra uma vida de grandes feitos artísticos e é dado pelo American Film Institute, que reúne destacados membros da referida e viciosa comunidade. Foi o que Hitch confirmou ao receber o prémio: “Quando um homem é considerado culpado e é condenado à morte, é muito melhor que o seja por um júri dos seus amigos e vizinhos.” E não se eximiu a testemunhar que os seus feitos flagiciosos só foram possíveis com a cumplicidade de actores, escritores, técnicos, produtores e banqueiros, a que chamou “um variado leque de outros delinquentes”.

Era, obviamente, um criminoso. Poeta também. Crime por crime, roubo a expressão a Nelson Rodrigues e venho dizer-vos que os filmes de Hitchcock cantam o maravilhoso morto de domingo. Revejam-nos que o crime compensa.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

The Trouble with Harry no Brasil é O Terceiro Tiro.

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