Norma Bengell, para mim, faz lembrar um Brasil que parecia que ia dar certo.
Norma Bengell tem um gostinho de anos dourados – aquele período especialmente rico da cultura brasileira, em que tudo era novo: nova capital, bossa nova, início do cinema novo.
Não sei se as datas batem exatamente, mas, na minha lembrança, talvez no meu imaginário, Norma Bengell tem gosto do Brasil entre 1958 e 1963. O tempo da primeira Copa do Mundo, a da Suécia, em 1958. Da primeira (e única) Palma de Ouro em Cannes – a do filme em que ela fazia a puta que brigava no meio de uma ladeira de Salvador com a mulher do camponês ingênuo, puro, pagador de promessas. O tempo da explosão de João Gilberto, o amor o sorriso e a flor.
Um dos momentos mais gloriosos da História deste país, antes que a quarta-feira de Cinzas se abatesse sobre ele no dia 31 de março de 1964.
Noite Vazia, o filme bergmaniano de Walter Hugo Khoury em que ela contracenava com outra diva, Odette Lara, é exatamente de 1964. Foi lançado já no país acinzentado pela ditadura – mas na minha memória ficou como dos anos dourados.
O outro dos três filmes fundamentais da carreira de Norma, assim como O Pagador de Promessas, é pré-golpe militar. Os Cafajestes, de Ruy Guerra, chocou as senhoras pudicas que depois iriam às ruas nas Marchas da Família com Deus e sei lá mais o quê, orando por uma ditadura. As senhoras pudicas, tadinhas, não podiam admitir que uma mulher expusesse seu corpo nu pela primeira vez em um filme brasileiro – embora as mulheres expusessem seus corpos nus desde 1933, quando Hedy Lamarr apareceu nua em pelo em Êxtase.
Norma Bengell dava de mil a zero em Hedy Lamarr.
Às vezes costumo dizer que a arte brasileira só não é mais reverenciada no mundo inteiro porque é feita nesta língua bárbara. Se Caetano e Chico tivessem nascido em país de língua inglesa, teriam o reconhecimento mundial semelhante ao de Bob Dylan.
Se Norma Bengell fosse francesa, Brigitte Bardot não teria tido tanto brilho.
Basta ver Assim Era a Atlântida, o Era Uma Vez em Hollywood tupiniquim, que Carlos Manga fez em 1975. No filme, há um trecho de O Homem do Sputnik, de 1959, dirigido pelo próprio Carlos Manga. Norma, em sua estréia no cinema, imita o maior símbolo sexual da época – é divertidíssimo. NB está mais parecida com BB que a própria BB, fazendo biquinho e tudo. E, meu Deus do céu e também da terra, como era absurdamente linda e gostosa NB.
Como BB, La Bengell também gravou discos. Em 1959, lançou pela Odeon o LP Ooooooh! Norma. É uma maravilha. Norma canta em inglês (um ótimo inglês), em espanhol, além, é claro, de nesta língua bárbara. Antenada, gravou a então recentíssima “Eu sei que vou te amar”, de Tom e Vinicius, e “Ho-ba-lá-lá”, uma das pouquíssimas composições do próprio João Gilberto.
Na capa do disco, aparece como se estivesse nuinha em pelo. Norma antecipou-se até mesmo a Os Cafajestes de Ruy Guerra.
Canta tão bem quanto os outros símbolos sexuais daqueles anos dourados, BB e MM. Se não for melhor.
Descanse em paz, Norma. Nós, morituri, te admiramos.
9 de outubro de 2013
Excelente texto. Retrata perfeitamentre como foi La Bengell, essa musa da nossa cultura, minha contemporânea e ídolo de muitos jovens como eu durante os anos dourados.Justíssima homenagem.
Em poucas linhas, descobri uma Norma Begell que não conhecia totalmente. Melhor que meia página de jornal.
Norma viveu uma bela vida, totalmente dedicada ao cinema e ao teatro. Atriz, cantora e diretora, sempre militando e apoiando as causas democráticas. Lutou contra a ditadura militar e esteve na linha de frente da campanha da nossa presidenta Dilma Rousseff em 2010.
Apenas quinze pessoas dão o último adeus a Norma Bengell; ausência de artistas revolta cineastas.
“É uma injustiça […] alguém como ela terminar desse jeito”, protestou Luiz Carlos Barreto em cremação