Depois que o amor acaba, volume 2

Hoje pela primeira vez prestei atenção à letra de uma determinada música, “About the children”.

É uma melodia belíssima, e uma letra impressionante. Está no meu iTunes, e portanto já devo ter ouvido antes, em casa, ou caminhando. Mas nunca tinha prestado atenção a ela.

Será que é só comigo que isso acontece? Ter uma música num disco em casa, ou no iPod, e nunca ter prestado atenção direito a ela?

***

“About the children” tem letra e música de Tom Paxton, um compositor e cantor de quem gosto demais. É uma gravação ao vivo. Só a voz de Tom Paxton e um impressionante piano – mais nada.

Fala sobre um dos temas que mais me fascinam: o depois que o amor acaba, a relação com a ex-mulher.

Que o amor acaba a gente sabe. Aprendi isso quando era um garoto, com a vida, ela mesma, cette chienne, e com duas obras de arte de rara beleza, a crônica “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos, e Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy.

Que o amor acaba é axioma, é dogma. É um dado da realidade, como a chuva, a gravidade, o tsunami, a morte.

Me fascina o que acontece depois que o amor acaba.

Quando você está andando na rua e, por acaso, encontra seu velho amor, como Paul Simon canta em “Still Crazy After All These Years”: “Encontrei meu velho amor na rua ontem à noite. Ela pareceu muito feliz por me ver – eu apenas sorri. E nós falamos sobre velhos tempos e bebemos umas cervejas, still crazy after all these years.”

Uma vez, muitíssimo tempo atrás, escrevi um desabafo sobre uma noite em que encontrei um velho amor.

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Bem mais recentemente – acho que foi até depois que minha filha notou que tudo na minha vida agora vira texto –, escrevi sobre três canções que falam sobre o depois que o amor acaba. Uma, mexicana, “Para que regresses”, tem uma letra (propositadamente, brincalhonamente, acho, espero) calhorda, machista, filha da mãe. As duas outras – uma do catalão Lluis Llach, “Que Tinguem Sort”, a outra de Charles Trenet, “Que reste-t-il de nos amours?”, mas na letra americana, “I Wish You Love” – são, bem ao contrário, esplendorosas: o ex-amante, muito provavelmente o amante abandonado, deseja à sua ex sorte, amor, felicidade. Tudo de bom.

Com sinceridade. Não há ironia, não há uma agressão sob a capa carinhosa, como a de “Olhos nos Olhos”, de Chico. Os amante da canção de Llach e da canção de Trenet na nova letra de Albert Beach de fato querem a felicidade da ex.

Que ela tenha a sorte de encontrar alguém que seja capaz de fazê-la feliz como eu não soube, não pude.

***

E então hoje, de repente, sei lá por que – talvez porque estivesse distraído –, fiquei conhecendo “About the Children”, de Tom Paxton.

Não resisto à vontade de traduzir palavra por palavra.

Há uma pausa na conversa, enquanto o garçom serve nosso chá.

A interrupção é um grande alívio para mim.

Gostaria que ficasse o dia inteiro – eu não teria nunca que falar

Sobre as crianças.

 

Você está ótima, e esse vestido foi feito para você.

Do colar me lembro, mas o bracelete deve ser novo.

Mas agora é outro dia, vou limpar minha garganta e falar

Sobre as crianças.

 

Ah, elas estarão na escola, vão para os acampamentos

E são jovens demais para saber como é difícil passar por isso.

Aqueles deveriam ser os anos para nós, para fazermos amor à tarde,

Sem preocupação com as crianças.

 

A conversa é civilizada, nós calmamente acenamos com as cabeças.

Você sorri como sempre sorri, mas seu guardanapo está todo rasgado.

Você gostaria de ir embora – ah, quem será o primeiro a falar

Sobre as crianças?

***

Que beleza de letra. Meu, que maravilha. Claro que perde demais nessa tradução literal e nada poética que me deu vontade de fazer (o original vai lá embaixo), mas é uma maravilha.

A mistura do “nós” com o “você”, do relato puro e simples do encontro com frases dirigidas especificamente a ela – que talvez ele tenha dito, ou talvez só pensado em dizer, sem ter tido a coragem.

“The necklace I remember, but the bracelet must be new.”

Vai aí nesse verso uma amargura doída, uma nostalgia do que não existe mais, uma ponta de ciúme – será que o bracelete foi presente do novo cara?

A fisgada do membro que já perdi, como diz insuperavelmente o Chico, em outra canção: agora que as crianças estão maiores, agora poderíamos estar tendo mais tempo para nós, para trepar no meio da tarde.

O narrador não é um sacripanta, um safado, como o da canção mexicana, que deseja para a mulher tudo de ruim que pode acontecer na vida, para que ela volte para ele. Mas ainda não chegou ao estágio em que estão os narradores de “Que Tinguen Sort” e “I Wish You Love”. A dor da perda ainda é maior que a amizade que deveria vir depois da separação e da superação do trauma.

***

Mas confesso que não compreendi muito bem a situação que o autor descreve.

Se os dois são capazes de se encontrar e conversar civilizadamente – ainda que numa situação tensa, esquisita (awkward seria a palavra exata), ainda que de forma um tanto dolorosa –, se já se passou algum tempo desde a separação, tanto que as crianças já cresceram um pouco, por que então a tensão, a esquisitice?

E, sobretudo, por que passaram tanto tempo sem conversar sobre as crianças?

Porque ou eu não entendi direito o que diz a letra, ou então eles ficaram muito tempo sem conversar sobre os filhos.

E isso não combina com pessoas civilizadas.

Porque não importa o que vá acontecer depois que o amor acaba, não importa quanto tempo vai durar a dor, a angústia, o peso da pata de elefante no peito daquele que foi abandonado: se há criança na história, é absolutamente fundamental que os dois ex conversem.

Se há filho na história, os ex que engulam a dor, que purguem a dor de alguma outra forma – mas os filhos são sempre mais importantes do que qualquer dor de depois que o amor acaba.

23 de dezembro de 2013

Infelizmente, não achei a música no YouTube. Para o eventual leitor que não conhecer Tom Paxton, o YouTube tem “When Annie Took me Home”  e “The Last Thing on My Mind”.

About the children

Tom Paxton

The conversation pauses, while the waiter pours our tea,

 This timely interruption is a great relief to me.

 I wish he’d stay all day, I’d never have to say,

 About the children.

 

You’re looking really lovely, and the dress is really you.

 The necklace I remember, but the bracelet must be new.

 But that’s another day, I’ll clear my throat and say

 About the children.

 

Oh, they’ll be away at school, they’ll have their camps to go to.

 And they’re much too young to know how hard it is to go through.

 These were to be the years for us, making love in the afternoon,

 No worries anymore

 About the children.

 

The conversation’s civilized, we calmly nod our heads,

 You’re smiling as you always do, but your napkin is in shreds.

 You’d like to run away, ah, who’ll be the first to say

 About the children.

 

Oh, they’ll be away at school, they’ll have their camps to go to.

 And they’re much too young to know how hard it is to go through.

 These were to be the years for us, making love in the afternoon,

 No worries anymore

 About the children.

 

The conversation’s civilized, we calmly nod our heads,

 You’re smiling as you always do, but your napkin is in shreds.

 You’d like to run away, ah, who’ll be the first to say

 About the children.

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