Avacalharam a língua portuguesa. Com esse acordo ortográfico mal ajambrado, porco, criaram um desacordo fenomenal entre os países de língua portuguesa – em especial entre Brasil e Portugal.
Avacalharam. O verbo é forte, mas exprime perfeitamente o que aconteceu. Expuseram ao ridículo, desmoralizaram, bagunçam, enxovalharam, degradaram, desordenaram a língua. A língua é rica – há os mais variados vocábulos para definir os resultados do acordo ortográfico. É rica – mas foi avacalhada.
Uso a terceira pessoa do plural, mas não é um sujeito indeterminado. Têm nome, os autores da ação. São os autores do acordo, e os governos que o subscreveram.
Mas o pior é que poderia perfeitamente ser usada a primeira pessoa: avacalhamos a língua. Nós todos – em especial a imprensa e a indústria editorial brasileiras. Todos nós corremos feito loucos para, na primeira hora, adotar o acordo que, pelos seus próprios termos, só deveria entrar em vigor a partir do dia 1º de janeiro deste ano.
Os grandes jornais e revistas brasileiros não só adotaram de imediato, a partir de 1º de janeiro de 2009, os termos do acordo, como o festejaram. Publicaram “guias da nova ortografia”. “Nosso alfabeto passa a ter oficialmente 26 letras”, comemorou um dos três maiores jornais do país.
As editoras correram para lançar novas tiragens de livros, apresentando orgulhosamente dizeres como “Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009”.
“Que entrou em vigor no Brasil em 2009.” Ridículo – e trágico. Entre 1º de janeiro de 2009 e 1º de janeiro de 2013 haveria – pelo que dizia o próprio acordo – um período de adaptação, em que as duas grafias seriam aceitas. Entrar em vigor, só entraria mesmo agora, em 2013.
Corremos todos para a novidade – sem parar um minuto para pensar, refletir.
Pensar, refletir. Está em falta no país esse artigo.
Corremos todos para a novidade como os cariocas correm atrás de modismos novos a cada verão. Como se todos nós adorássemos uma novidadezinha. Como se estivéssemos com saudade dos tempos em que tínhamos nova moeda a cada dois ou três anos. Já que não tem moeda nova, que tal uma ortografia nova?
Mais velhos, mais sábios, mais calmos, menos afoitos, nem governo nem os órgãos de imprensa de Portugual aderiram logo ao acordo. Lá, discutiu-se muito a respeito dele. Em maio de 2009, um abaixo-assinado contra o acordo já contava com mais de 120 mil adesões, segundo relata artigo de Vasco Graça Moura publicado no Diário de Notícias no dia 2 de janeiro agora, e que transcrevo neste site.
O artigo, em tom mais irado do que este meu texto, é apenas uma demonstração da profunda insatisfação de jornalistas, editores e gramáticos portugueses com o acordo.
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A notícia de que a presidente da República assinou decreto adiando a implementação definitiva do acordo no Brasil para 1º de janeiro de 2016 (o decreto foi publicado no Diário Oficial da União de 28 de dezembro) teve pequeníssimo destaque na imprensa. O Globo deu chamadinha de uma coluna no pé da primeira página, e texto em três colunas na página 9, com o título “Governo prorroga prazo e nova ortografia entra em vigor em 2016”. O Estado de S. Paulo sequer deu chamada na primeira página, e noticiou o fato num pé de página – dando como espécie de desculpa para a pouca importância o fato de que o jornal havia antecipado em 29 de novembro a “opção pelo adiamento”.
É uma tristíssima amostra de como o país trata a sua língua, da importância que dá a ela.
Quantas reportagens foram feitas, ao longo destes quatro anos – de janeiro de 2009 até dezembro de 2012 – sobre como está sendo o ensino de Português nas escolas básicas? Nas faculdades de Pedagogia? Como foi que a imprensa discutiu o assunto?
Alguém sabe dizer se os meninos estão aprendendo a escrever vôo ou voo? Idéia ou ideia? Delinqüência ou delinquência? Seqüestro ou sequestro?
Se os meninos estão aprendendo que a defesa do Corinthians pára o ataque adversário – ou estão sendo ensinados que o trânsito para para as comemorações do ano novo?
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Uma das raríssimas exceções na afoiteza da imprensa e do mercado editorial brasileiros para adotar o acordo foi o Jornal da ABI – o órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa. No seu número de fevereiro de 2010, por exemplo, publicou excelente reportagem com diversas críticas às normas adotadas no acordo assinado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Na edição de novembro de 2010, o Jornal da ABI me deu a honra de publicar um texto meu com o título “Fazemos reformas demais e educamos de menos”.
No artigo, escrevi: “A verdade é que o acordo, que teoricamente viria para unificar, aprofundou a divisão do Português. A verdade é que o acordo ortográfico é inútil, desnecessário, inócuo, contraproducente, oneroso. (…)
“Fazemos no Brasil reformas demais, e educamos de menos. (…) Fizemos uma profunda alteração na ortografia nos anos 30; fizemos outra alteração em 1971, e agora esta outra, em 2008/2009. É reforma demais, num espaço de tempo curto demais. Dá para afirmar, com segurança, que nenhuma outra língua importante passou por tantas modificações num período tão curto de tempo.”
E concluía pedindo reflexão, debate:
“Difícil imaginar uma saída para esse imenso imbróglio. Mas também não é possível simplesmente dar as coisas como feitas e acabadas. É preciso manter em mente, sempre, que nada é irreversível. Vamos manter o debate. Ampliá-lo. A língua é muito maior e mais importante que esse acordo torto que só cria desacordo.”
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O trágico da questão é que, ao que tudo indica, pensar, refletir, é de fato artigo que anda em falta neste país.
3 de janeiro de 2013
Em tempo: este site, assim como o 50 Anos de Filmes, não aderiu às regras do acordo ortográfico.
Muito bem! Apoiado!
Trabalhar por ensinar português é mentira. Já brincar às ortografiazinhas… Que gente inútil! Pff!
Cumpts.
Gosto do texto e concordo a 100%. O pior é que cá fizemos o mesmo…
Parabéns Sérgio Vaz pelo seu excelente artigo sobre o Des-Acordo Ortográfico de 1990 ! Os governos a fingir que governam, “compram” leis e acordos uns atrás dos outros; as editoras e a comunicação social (mentecaptas) correm atrás destes governos, para “vender” seja o que fôr…E o povo,e os povos,são ouvidos ? Em Portugal mais de 120.000 assinaturas contra o Acordo,nem foram considerados pelo Parlamento…no Brasil houve 20.000 e foram ouvidos ! Parabéns !
Como já havia comentado, a discussão é insólita, escrever “vénia ou vênia” pouco abrilhanta ou dignifica a lingua portuguêsa. O português de “Os Lusíadas” seria atual e devidamente grafado por um contemporâneo Luiz de Camões?
A nova ortografia é uma velha mania de se fazer tudo através de leis e decretos. Usos e costumes é que devem ser aceitos e estudados. Atrevo-me, por ser flamenguista,a saudar á sábia torcida corinthiana que transformou “yes,we can” em sábio “É NÓIS” grafado simplesmente, “e nois”. E que nos desculpem os torcedores portuguêses do Benfica.
Mas que embróglio? Quem quer saber desse assunto? Quem quer saber de escrever com trema no Brasil? E quem quer saber de escrever com consoantes mudas em Portugal? Vc já reparou que este assunto já só interessa a velhinhos e a mesquinhos?