A primeira palavra lida

A mãe foi atender ao telefone e deixou a filha diante do computador. Na volta, a menina perguntou: “mãe, o que é cadastrar?” Por que ela queria saber isso?, foi a resposta. “É que eu li aqui”, apontou para a tela.

Um arrepio tomou conta da mãe, assustada e orgulhosa. A menina já rondava, com seus desenhos, sua curiosidade e escritos, a fronteira da leitura. Eis que agora, de repente, espontaneamente, ela declara rompida a barreira do conhecimento. A primeira palavra que se lê é um acontecimento na vida de todas as pessoas.

E tudo aconteceu naturalmente, num macio e longo processo iniciado com os familiares e conduzido com propriedade pelos educadores. Não se ensina mais como nos tempos dos avós, mas o método atual é muito bom. Aos poucos os pequenos vão adquirindo as ferramentas que os levarão ao ponto de encontro do ler e do escrever. Cantos e brincadeiras colorem esse caminhar na busca do aprendizado da linguagem. A oral, no caso da pequena em foco, já é extraordinária, surpreendente na colocação de verbos, na concordância. Como pode, eu fico me perguntando falar dessa maneira, tão mais correta do que muitos dos adultos que conheço? Sei lá. Pode ser propensão ou, mais certo, influência dos que a cercam e educam.

Aqui não falo apenas da minha clara menina, mas sua história me leva a outras. Como a do Milagre de Anne Sullivan, um dos filmes mais comoventes que vi em minha vida de cinéfilo. Nele, uma criança que fica cega e surda, com cerca de um ano de idade, é retirada das trevas, graças ao trabalho de uma professora, que tem a tenacidade e a perseverança de lutar, até contra os pais da pequena, para abrir as luzes do conhecimento para ela.

A menina conhece as palavras mas não as liga aos significados. Até que, brincando com água, murmura os sons da palavra guardados da memória de seus primeiros dias, ainda sã. Anne Sullivan soletra em suas mãos as sílabas da linguagem dos cegos e surdos. No instante, Hellen Keller, a criança, relembra a palavra e a incorpora ao que escorre pelas suas mãos. A linguagem ganha significado e ela junta, como num quebra-cabeça, todos os signos com os objetos. Passa as mãos pelo rosto da mãe e lhe fala, em sua maneira de expressar, mãe. O mesmo com o pai. Com a professora, que diz amar, grata pelo que está lhe ocorrendo.

O mundo fica então em suas mãos e significando.

Quando um adulto ou uma criança têm esse estalo de descobrir que sabe ler, o espanto do conhecimento se estabelece. Por isso é que, imaginando aqui de casa o que ocorreu na casa da mãe e da filha da minha história, eu me arrepio e sinto que a água ameaça desabar pelos meus olhos.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em abril de 2012.

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