Edmundo, brasileiro Prêmio Nobel, conta sua saga

Em sua casa, em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, Edmundo Manzini de Souza, Prêmio Nobel da Paz, recorda a noite em que, comandando um grupo de combate, no Deserto do Sinai, sentiu que o solo por onde caminhavam havia ficado diferente.

Seguiam à noite, como cegos, sob uma tempestade de areia. Iam grudados uns aos outros. Grudados mesmo: o de trás segurava um cadarço do uniforme do que ia à frente. O que acontecia com o solo é que os pés não afundavam mais na maciez da areia. Havia alguma coisa, sob eles, dura como cimento.

Era cimento mesmo. Haviam invadido, sem perceber, o acampamento de um grupo de nômades da Al Fatah. Se em vez de brasileiros fossem judeus estariam perdidos. Mas eram da terra de Pelé, e integrantes da Força de Emergência da ONU, a Organização das Nações Unidas. Os Boinas Azuis. Portanto, neutros.

Estavam lá para garantir a paz, ou, mais apropriado, impedir a guerra entre judeus e egípicios. Em 1963, a Faixa de Gaza, onde se encontravam, já era um barril de pólvora, se é que a expressão ainda faz sentido. A tensão era muito maior do que a de hoje, depois do ataque de Israel aos navios humanitários a caminho da Faixa de Gaza.

Naquela noite, os nômades do acampamento invadido, bem armados, imobilizaram o comando brasileiro. Mas o trataram bem. Respeitaram o comandante. Deixaram que Edmundo ficasse com suas armas, uma metralhadora e uma pistola. Desarmaram os outros e os mandaram sentar no chão.

Interessaram-se pelos cantis dos invasores. Não teriam araque, a aguardente árabe? Não, mas cachaça podiam garantir. Falando uma mistura de árabe, inglês e francês, trocaram amabilidades. Cigarro brasileiro (Minister) por chaveirinhos da Al Fatah. Quando o dia clareou, os nômades revistaram os invasores, conferiram a nacionalidade, na etiqueta dos uniformes, e os liberaram.

“Eu tinha 26 anos, era sargento, e comandava 22 homens no 1º Grupo de Combate do 3º Pelotão (Pelotão Paraná) da 7ª Companhia de Fuzileiros do 13º Contingente do Batalhão Suez. No deserto, todo dia tem tempestade de areia. Sob sol, a temperatura era de 52 graus. À noite, caía para 4 graus. A areia não retém o calor, mas reflete o sol.

“A nossa missão era evitar o confronto entre judeus e árabes. Os grupos nômades, como a Al Fatah e o Fedayin , estavam armados para pegar judeus. E era complicado. Às vezes a molecada jogava pedra na viatura. Para os nativos, nós éramos intrusos.

“Nosso acampamento, com barracas de lona, ficava no Deserto do Sinai, na Faixa de Gaza. Uma de nossas missões era cuidar de um trecho da Linha de Demarcação de Armistício, uma valeta cavada na areia, de 60 cm de fundo por 60 cm de largura. Separava Israel da Faixa de Gaza (os brasileiros cuidavam de 32 quilômetros). Se houvesse problemas, nós seríamos o alvo, dos dois lados.

“A valeta tinha que ser limpa todo dia, para marcar a divisa. Era um trabalho insano. A tempestade cobria de areia, e tínhamos que cavar de novo.”

Edmundo servia como sargento no Quartel General do 2º Exército (hoje 2ª Região Militar), em São Paulo, quando soube que o Exército Brasileiro integraria as forças de paz da ONU. Disputou uma vaga. Um dos seus interesses era o soldo, três vezes maior do que ganhava aqui (não lembra valores). Havia um detalhe: estava noivo.

O navio em que embarcou, em Santos, levou-o a… Porto Alegre. Na capital gaúcha passou por treinamento, recebeu vacinas e instruções. Tudo pronto, integrou a força de 380 homens embarcados no navio Ary Parreiras, com seus beliches de seis andares. Demoraram-se muito tempo nas Ilhas Tenerife, próximo às costas da África. Com mais de um mês de viagem, desde a partida, chegaram a Port Said, no Egito.

Nesse porto começa o Canal de Suez, que liga dois mares – o Mediterrâneo ao Vermelho – e permite a navegação da Europa para a Ásia, e vice-versa, sem contornar a África. O canal estava no centro dos incidentes da região. O destino seguinte dos desembarcados foi Rafah Camp, na Faixa de Gaza.

Perto desse lugar, no antigo Forte Inglês, o Brasil instalara seu QG. Dali, os recém-chegados foram enviados para suas bases, à frente da Linha de Demarcação de Armistício, em lugares pouco habitados do deserto.

 “Durante o dia, fazíamos vigilância em três postos de observação, separados entre si por três quilômetros. Ficávamos em uma caixa de cimento, com o visor voltado para Israel, a uns 50 metros da linha. Usávamos binóculos, telefone magnético de campanha e armas de defesa.

 “Às seis da tarde saía a patrulha à pé. Ficávamos 12 horas andando ao longo da linha. Em silêncio, sem fumar. Não falávamos, se preciso cochichávamos. Quando uma patrulha motorizada se aproximava, ficávamos em posição de defesa e dávamos sinal de lanterna. Pedíamos a senha. Eles davam, e nós dizíamos a contra-senha.

‘Essas senhas eram criadas pelo QG da ONU, e mudavam toda noite (palavras do alfabeto de radiocomunicação, como ‘charles’, ‘delta’, ‘victor’). A situação era: quem não tem senha come chumbo.

 Às vezes, no começo, apareciam alguns soldados de outro país, bêbados. Dávamos sinal, eles paravam. Mas não sabiam dizer a senha, só falavam de onde eram e queriam prosseguir. Nós dávamos a ordem: ‘Volta!’. E eles não tinham jeito senão obedecer.”

Para distrair, não ficar só pensando na família, os soldados construíram uma praça em frente ao acampamento (que, então, já tinha base de alvenaria). Instalaram uma placa, com o nome dos 23 homens do grupo. Uma frase de Edmundo encimava a relação de nomes: ‘Somente os bravos vencem a solidão do deserto’.

O Canadá, que cuidava da logística, fazia as cartas das famílias chegar pela mala diplomática. Vinham em aviões canadenses ou no Hércules C-130 da FAB (Força Aérea Brasileira). Às vezes atrasavam muito. Um bolo de Natal só chegou para Edmundo em fevereiro.

Em março de 1964, quando os militares assumiram o poder no Brasil, Edmundo e seus homens ficaram angustiados. Não tinham notícias da pátria, dizia-se que estava havendo uma guerra civil. Às vezes conseguiam uma informação melhor, do noticiário de rádios estrangeiras que falavam um pouco de português.

Em 25 setembro de 1964, Edmundo e seus companheiros iniciaram a longa viagem de volta. Em Port Said, à entrada do Canal de Suez, embarcaram no Barroso Pereira, navio da Marinha de Guerra brasileira. Escalaram em diversos portos, entre eles o de Marselha, na França. Só em 13 de outubro desembarcaram no Rio. Um ano e três meses depois da partida.

No cais do Arsenal da Marinha estavam a mãe e a noiva de Edmundo, que haviam viajado de São Paulo. “Foi uma alegria indescritível, uma emoção que ninguém pode imaginar.” Edmundo está casado há 44 anos. Tem quatro filhos e dois netos. É professor doutor cirurgião dentista, e sanitarista, formado pela Universidade de São Paulo, USP. Na última quarta-feira fez 73 anos.

Em 1988, o Prêmio Nobel da Paz foi destinado às Forças de Paz da ONU. O Batalhão Suez, dos brasileiros que atuaram durante dez anos (1957-1967) na Faixa de Gaza, estava incluído. Edmundo guarda sua medalha e seu diploma de Nobel da Paz junto com outras medalhas, como a do Exército Brasileiro e do Pacificador.

O contexto que levou o brasileiro Edmundo a Gaza

Inaugurado em 1869, o Canal de Suez, no Egito, liga o Mar Mediterrâneo ao Vermelho. Viabiliza a navegação da Europa para a Ásia, e vice-versa, sem precisar contornar a África. Foi construído por iniciativa da França. Este país e o Egito eram seus maiores acionistas. Mas o Egito vendeu sua parte aos ingleses.

Em 1953, Gamal Abdel Nasser liderou uma revolta e assumiu o governo do Egito. Três anos depois, em 1956, nacionalizou o canal e fechou o porto de Eilat, no Mar Vermelho, o que impossibilitou o trânsito de Israel.

Negociações entre os países envolvidos fracassaram. Com isso, Israel invadiu a Faixa de Gaza, controlada pelo Egito, e a Península do Sinai, em território egipício. As aviações francesa e britânica atacaram o Egito, e Nasser afundou 40 navios no canal, e o fechou.

Os ingleses e franceses passaram a controlar o canal, mas os Estados Unidos condenaram o emprego da força. Em março de 1957, os ocupantes se retiraram e o canal foi reaberto. Israel deixou o Egito, mas o risco de confronto entre os dois países continuou latente.

Nasser procurou o apoio da ONU para garantir a paz. Criou-se, assim, a Força de Emergência da ONU, com dez países integrantes – entre eles o Brasil. Para pacificar a região, e evitar novos confrontos, essa força – apelidada dos Boinas Azuis – interpôs-se entre as de Israel e Egito.

Com 6 mil homens revezando-se, a Força de Emergência garantiu a paz de 1957 a 1967, quando se retirou, a pedido de Nasser. Ainda havia soldado da força na região, brasileiros inclusive, esperando embarque, quando eclodiu a Guerra dos Seis Dias, em que Israel bombardeou Egito, Síria e Jordânia.

Mas este já não era assunto para os Boinas Azuis.

Junho de 2010.

Esta reportagem foi originalmente publicada no Diário do Comércio.

3 Comentários para “Edmundo, brasileiro Prêmio Nobel, conta sua saga”

  1. Olá,
    Você tem o contato do Sr Edmundo Manzini de Souza?
    Adoraria conversar com ele. Estou fazendo um trabalho da faculdade sobre os latino-americanos que ganharam o Prêmio Nobel.
    Quero muito conhecer a história dele sobre o prêmio que recebeu em 1988.
    Obrigada
    Mari Azoli
    Email: azoli.mari@gmail.com

  2. Meu querido dentista, que inspirou minha irmã a cursar odontologia e foi seu professor na faculdade. Adorei o artigo. Só esqueceram de dizer que, além de herói de guerra, ganhador de prêmio, excelente dentista, atencioso, tranquilo, bom coração, ele é, ainda, campeão na criação de pipas. Tio Edmundo, parabéns!!!

  3. Sr Edmundo Manzini de Souza
    Parabens pela sua missão pela UNEF.
    Eu fui do 17°contingente 1965 a 1966
    estou com 69 anos. Sou do Rio de janeiro.
    Faço parte do desfile de 7 de setembro todos
    anos .
    Um forte abraço e extencivos aos colegas

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