A Espécie Humana. Capítulo 8

estou subindo um monteestou escalando um monte de dificílimo acesso mas uma violenta e invencível ânsia me impulsiona para o altodependurado sobre o abismo que não tem fim, eu galgo com determinação, sempre para o alto.  o que me espera lá em cima é o que atraisei que há uma porta que protege um pedaço de meu enigmasó um pedaço, sei bemmas, para sacar do enigma a sua resposta, é preciso quebrá-lo em pedaços e começar a decifrar os fragmentossei também que decifrar todos os pedaços não me dará a resposta últimadecifrar dúvidas não será decifrar a dúvida; mas eis aí o máximo que conseguirá minha condição de humano, demasiado humano 

chego então ao alto e agora já não cabe dentro de minha memória todo o sofrimento que foi galgar o precipícionão foi sofrimento, estou noutra esfera e agora eis que já são outras as minhas referênciassó uma porta existe à minha frente 

abro-a e vejo, sentado num trono branco, de osso, um pai-demônioum estranhíssimo minotauro que no corpo é pai mas é demônio na almanão tenho medo mas uma fascinação demasiado cruel me faz imóvelsuores querem rebentar na minha testatento decifrar o olhar dessa figura que me fita com seus olhos que vêm de não consigo saber ondea custo, crio coragem e falo:

desça desse trono porque não vou te adorar 

não estou aqui pra ser adoradose desço do trono, você se perde a si mesmo 

o que está fazendo aqui?

eu podia te perguntar a mesma coisao que está fazendo aqui?  vim pra presenciar aquilo que está pra acontecer 

por que motivos acontece aquilo que está pra acontecer?

não seiquando digo que não sei, quero dizer que você não sabepor que me pergunta coisas cujas respostas desconhece?

sempre tenho a esperança de que algo do mais fundo de mim venha à tona, livre da censura e da ignorância da vigília 

ouça isto que vou falar: você me dá mais atenção do que eu mereço 

eu silencieiele continuou impassível, com o olhar parado a me atravessar e a se perder atrás do que me pertenceentão comecei a sentir ligeira coceira na línguaabri a bocaminha saliva fazia arder minhas bochechasquis fechar a boca e não conseguiestava toda feridamexi o maxilar e senti dores fortes 

olhando à frente, vi que ele não mais estava sentado num trono, mas na escada que leva ao sótãomas nessa escada é que eu estava!, penseiolhei mais fixamente e percebi que ele se parecia muito comigoque estaria acontecendo agora?  foi então que descobri que ele era a minha imagem no espelhoeu estava realmente sentado na escada e me via refletido no espelho à frenteabri então a boca e me sacudi todo, assustadotodo o interior da minha boca estava ulceradofirmei mais a vista e vi que também os lábios apresentavam-se sanguinolentos 

foi então que senti a mesma coceira no ânusum formigamento estranho, que resultava dolorido ao contrair os esfíncterescomo eu estava nu, passei a ponta dos dedos e pude tatear cascas de feridas grosseiras em toda a regiãoquis me levantar mas meu corpo estava mole e pesadono espelho confirmei o que temia: já as feridas fizeram desaparecer meus lábios e todo o rosto trazia agora manchas amarelas com os olhos roxos no centrotambém as feridas do ânus se tinham alastrado e já se me fazia terrivelmente doloroso continuar sentadomas era fato que também não conseguiria me levantar, tão pesado, inerte e incapaz eu me sentiapercebi que se não me mexesse doeria menossenti todavia que, à medida que as pústulas se espalhavam pelas nádegas, meu corpo ia se integrando à escada, acomodando-se às saliências e vãos 

e minhas mãos, como estariam?  para espanto, notei que conservavam a sua cor rosada, como se pertencessem a outro corpo que não o meuda boca e do ânus é que irradiava a pestilênciae já toda a cabeça estava tomada: os olhos inchados e molhados de um verde gosmento, o nariz enegrecido e saliente, as orelhas rachadas e esfarelantes, os cabelos empastados por um pus que escorria pelos ombros 

espichei as pernas na tentativa de ver meus pésalgo como patas agudas de um réptilminhas mãos principiavam agora a desoladora metamorfoseesverdeadas e grudentas 

estou voltando às origens da vida!

nada havia a apodrecer entãoolhei-me a custo no espelhoos olhos quase fechados permitiam que eu divisasse a extensão dos danosqueria que ele estivesse lá novamente, queria estar de novo frente a frente com meu demônio-eunãoà minha frente o reflexo do terror em que eu me tinha transformadoera comigo mesmo que haveria de ser travado o diálogo 

sempre tive medo de que isto acontecesse; principieifoi a partir da leitura daquele romance grego 

será este o tamanho de sua culpa?

inda que seja o tamanho da minha culpa, será também o tamanho da minha libertação 

quem fala em libertação está admitindo a culpaquem admite a culpa, admite o pecado 

estou condenado a conviver com esta moralfui amamentado com este códigonão admito esta transformação se não como algo simbólicosei que tudo isto se passa dentro de um sonho 

mesmo dentro de um sonho, o que interessa é que você está criando esta purificação como saída 

prefiro este sonho à loucura!

e se não for sonho?

se não fosse para ser sonho não se chegaria a este pontoapenas, de vez em quando, a boca cheia de aftas ou o ânus com pequeninas ulcerações 

por que a boca e o ânus?

esta pergunta é minhaeu não saberia responder mas sei perguntá-la 

você está muito seguro de que seja um sonhotransformado que está nessa coisa colada à escada, inerte, como um ancestral do que poderia ser humano, um réptil, um peixe, procure suas mãos e seus pés!

com efeito eu era já um amontoado de carnes apodrecidas, um gigantesco berne purulento 

uma criatura tubo, por onde entra o desvario da razão e sai o vômito da obra enlouquecidae pensa que tem boca e ânus!  procure a entrada e a saída!

com efeito eu já não me sentia com boca e ânusapenas um pólipo imenso, podridão desgovernada com um orifício no lugar onde podia florescer um cérebro, uma boca-ânus ávida, ávido de tragar, de morder, de beijar, de lamber, de sugar, de engolir 

e, antropófago e visceral, enchi-me de volúpia e avidez e voracidade e avancei resoluto até aquela coisa dentro do espelho, voando na densidade do ar, e engoli toda aquela montanha de sarna e câncer, meu reflexo no espelho 

aquietei-meporque me sentia agora preenchido, alimentado, e, principalmente, sem um desagradável interlocutor que me viesse cobrar por complexo de culpa 

mas por que pensei em complexo de culpa?

agitaram-se-me as entranhas como o vulcão que prepara o parto de fogo 

eu me resigno a conviver contigo, meu outro eu, meu pai-demônio, ressonância de todos os condicionamentos que o mundo fez crescer dentro de mima partir dessa escravidão, atingirei minha liberdadenão vou parar de pensar, sei que não vou ficar louco, um sonho pode dar pedaços de resposta!

e vomiteivomitei ou defequeiabriu-se o orifício boca-ânus e, lentamente, devolvi aquilo que devoraraantes que tivesse saído de mim o produto, eis o que pensara meu cérebro entorpecido: se fosse uma golfada aflita, seria vômitose fosse um despejar lento, seriam fezes 

mas que bola vermelha é essa que saiu de dentro de mim?  como num parto!

brilhava rubro e molhado à minha frente, envolto em água e sangue, um imenso feto dentro de rósea placentarebentou-se a placenta e eis que Eu estou dormindo à minha frente, com o meu tamanho de hoje, com a minha idade de hoje, dentro do meu sonho de hoje 

comecei eu, de fora, molécula macróbia, criatura de um só significativo orifício, comecei a chorar, convulsionado 

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Leia o capítulo anterior.

Leia o capítulo O.

Continua na semana que vem.

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