Um dos mais belos versos

“E eu trocaria todos os meus amanhãs por um único ontem.”

Não entendo nada de poesia. Li muito menos poesia do que deveria ter lido; sou pouquíssimo, quase nada culto. Mas já faz tempo que fico pensando que qualquer poeta grande gostaria de ter escrito esse verso.

É um dos mais belos versos que já ouvi na vida.

Milton Nascimento não se cansa de contar a história: quando ouviu “Ebony and Ivory” (“ébano e marfim vivem em perfeita harmonia nas teclas do meu piano – ó Deus, por que nós não?”), teve um acesso de raiva. Em mil oportunidades, Miltão conta a história. Olhou para o piano, furioso, e pensou coisas do tipo: pô, mas isso está aqui na minha frente, na minha cara, o tempo todo – por que eu não tive essa idéia antes? E usou a raiva, a fúria, para escrever – ele, homem da melodia, poucas vezes chegado a fazer letra de música – belos versos: “Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim / que perguntar carece: como não fui eu que fiz?”

Não sou artista, não sou poeta, não sou escritor – mas gosto de texto, sou apaixonado por texto. A rigor, juntar palavras é a única coisa que sei fazer na vida, e foi com isso que consegui pagar as contas. Quem não sabe fazer nenhuma outra coisa na vida a não ser escrever algumas frases que façam sentido e não tenham erros gramaticais pode muito bem virar jornalista, e foi isso que fiz.

Exatamente por isso, por viver de texto, é que posso dizer: dá uma inveja danada quando a gente vê a frase perfeita. Como Miltão teve inveja ao ouvir a frase perfeita de Paul McCartney.

Se eu fosse Miltão, Paul McCartney, até mesmo se eu fosse Bob Dylan, morreria de inveja do sujeito que criou esta frase: “And I’d trade all my tomorrows for a single yesterday / holding Bobby’s body next to mine”.

Filhos da mãe.

Para mim, “Me and Bobby McGhee” é uma obra-prima. É uma das mais belas canções pop de todos os tempos.

Há trocentas versões da canção – algumas puxam mais para o blues, outras para o country, outras para o folk. Há até uma versão que a transforma quase numa música africana – uma versão sensacional, extraordinária, da cantora ugandense Angela Kalule, com um delicioso sotaque; toca na trilha sonora do filme O Último Rei da Escócia. Fez um tremendo sucesso na voz de Janis Joplin, esse cometa maluco, talvez a única texana que tenha bebido mais cachaça do que George W. Bush (embora não tenha matado ninguém, a não ser ela própria), mas gente de todos os estilos, ao longo de várias décadas, quiseram fazer sua própria interpretação. A melodia sensacional se adapta bem a todos os estilos.

É uma bela, deliciosa, melodia. Mas a letra…

Que coisa impressionante.

Existe mesmo uma coisa que é um brilho de gênio – um momento muito especial em que uma coisa especialmente grande é criada. “Me and Bobby McGhee” é uma delas. Numa pesquisinha rápida, não consegui saber quem fez o quê, se Kris Kristofferson fez a música e Fred Foster fez a letra, ou vice-versa, ou se os dois, juntos e ao vivo, fizeram tudo, mas o fato é que foi num spark of genius.

A letra é como se fosse um filme. Mais que um poema, ou uma letra de canção, é um filme, um filme brilhante. É daqueles filmes que não explicam muito sobre o passado dos personagens – na verdade, não se explica absolutamente nada. Pega os personagens em uma certa altura de suas vidas, e o espectador-ouvinte que imagine o que bem quiser, que preencha as lacunas. Quando a ação começa, o casal está prestes a viajar – sim, é um road movie. O narrador pensa em pegar um trem, uma carona em um trem, viajar como clandestino em um trem, uma das mais fundas tradições da canção popular americana antiga, mas sua companheira, a Bobby McGhee do título, faz o sinal característico de carona e pára um imenso caminhão. E, na boléia do caminhão, vão os três, o narrador, a moça que viaja com ele e o motorista, cantando todas as músicas que conhecem.

Não sabemos como o narrador e Bobby McGhee se conheceram, há quanto tempo estão juntos. É um filme que deixa a história em aberto, é um clip, é uma canção pop com narrativa  cinematográfica. Logo no início já há um verso de fazer babar qualquer pessoa que gosta de palavras:

“Feelin’ nearly as faded as my jeans”.

Ah, cacilda, já não bastava os caras terem escrito o verso ““And I’d trade all my tomorrows for a single yesterday”, eles ainda por cima dizem isso? Mas aí é sugar muita inspiração das musas todas, é covardia, é sacanagem.

“Me sentindo tão desbotado quanto meu jeans.”

É muito brilho demais!

E então estão lá o narrador e Bobby McGhee na estrada, e andam, e viajam de Estado até outro Estado, e de repente, como na vida real, como pode acontecer na vida de todo mundo, e acontece, záp – de repente, o casal acaba. Bobby McGhee se manda.

E aí o filho da mãe do narrador, depois de perder a mulher nos caminhos da vida, fala a frase: “And I’d trade all my tomorrows for a single yesterday / holding Bobby’s body next to mine”.

“E eu trocaria todos os meus amanhãs por um único ontem com Bobby perto de mim.”

Mas tem mais. Esse verso é o ápice, o apogeu, mas tem mais. Kris Kristofferson e Fred Foster discutem ainda o que significa liberdade – um dos conceitos que, até aqui, pareciam mais claros, mais nítidos de todos os conceitos. Eles dizem o seguinte, na letra da canção-filme: “Freedom’s just another word for nothin’ left to lose: nothin’ ain’t worth nothin’ but it’s free”.

É absolutamente extraordinário. Liberdade, então, significa não ter mais nada a perder. Livre é quem não tem nada, coisa alguma. Que maravilha, que beleza, isso. É uma espécie assim de volta ao socialismo utópico, o sonho, o jeito de enxergar o mundo de uma maneira melhor – o contrário do que fazem na prática os que fingem que querem isso, tipo Stálin, Lula, Mao.

Não sei se Shakespeare, Browning, Frost, Dickinson, Yeats teriam inveja de Kristofferson-Foster. Eu morro de inveja – e de prazer de ouvir, e ouvir de novo essa maravilha.

Mas tenho cá pra mim que Bob Dylan, Paul Simon, Leonard Cohen, Randy Newman, Joni Mitchell, como Miltão, devem ficar se perguntando: como não fui eu que fiz?

Algumas versões no YouTube:

Janis Joplin, o vídeo oficial, com legendas em Português;

Kris Kristofferson e Sheryl Crow, ao vivo, apresentados por Willie Nelson;

O jovem Kris Kristofferson com Rita Coolidge, aquela maravilha.

21/6/2010

A letra:

Me and Bobby McGhee

 Busted flat in Baton Rouge, headin’ for the train,
Feelin’ nearly faded as my jeans.
Bobby thumbed a diesel down, just before it rained;
Took us all the way to New Orleans.
I took my harpoon out of my dirty red bandanna,
And was blowing sad while Bobby sang the blues.
With them windshield wipers slappin’ time,
And Bobby clappin’ hands,
We finally sang up every song that driver knew.

Freedom’s just another word for nothing’ left to lose:
Nothin’ ain’t worth nothin’ but it’s free.
Feeling good was easy, Lord, when Bobby sang the blues.
Feeling good was good enough for me;
Good enough for me and Bobby McGee.

From the coal mines of Kentucky to the California sun,
Bobby shared the secrets of my soul.
Standin’ right beside me, Lord, through everything I’ve done,
Every night she kept me from the cold.
Then somewhere near Salinas, Lord, I let her slip away,
Lookin’ for the home I hope she’ll find.
And I’d trade all my tomorrows for a single yesterday,
Holdin’ Bobby’s body next to mine.

Freedom’s just another word for nothing’ left to lose:
Nothin’ left is all she left for me.
Feeling good was easy, Lord, when Bobby sang the blues.
Buddy, that was good enough for me;
Good enough for me and Bobby McGee.

 

7 Comentários para “Um dos mais belos versos”

  1. Sérgio, texto brilhante. Por curiosidade, vale registrar que na versão cantada pela Janis, no final, temos ainda:
    La da da
    La da da da
    La da da da da da da da
    La da da da da da da da Bobby Mcgee, yeah
    La da da da da da da
    La da da da da
    La da da da da da da Bobby Mcgee, yeah
    La da La la da da la da da la da da
    La da da da da da da da da
    Hey now, Bobby, now, now Bobby Mcgee, yeah
    La la la la la la la la
    La la la la la la la la la la la la la la la
    Hey now Bobby now now Bobby Mcgee, yeah
    Lord, I called him my lover
    I called him my man
    I said I called him my lover did the best I cam, c’mon
    Hey now Bobby now
    hey now Bobby Mcgee, yeah
    wooooooo
    la da da da da da da da da da da da da da da da
    Hey, hey, hey Bobby Mcgee, yeah

  2. Um dia voce me disse que não apreciava poesia.Achei estranho, pois todas as belas canções que você ama tanto são poesias musicadas. Fiquei feliz ao ler seu texto!
    Lindo o que disse Milton ! É de babar!

  3. Considero a melhor letra ja feita, essa parte de “Chao de Estrelas”:

    (…) Mas a lua furando nosso zinco,
    Salpicava de estrelas nosso chão,
    Tu pisavas nos astros distraída(…)

    Isso é lindo!!!
    Como não pensei nisso antes?

    MP

  4. Musica linda demais. Quando a ouço tenho o impulso de botar o pé na estrada e sentir essa liberdade da personagem. Mas nós adultos sempre estamos presos a algo que ainda temos a perder… Entao fica só um amor platônico pelo que poderia ter sido. Um sonho que ficou pra trás como Janis…

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