Não é a cor da pele

O iminente julgamento das chamadas cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal vai muito além da adoção de um sistema dito “afirmativo” para o ingresso nas universidades.

Definirá se o país vai ou não institucionalizar uma política racialista. Se é justo embasar políticas públicas na cor da pele.

O veredicto – se as cotas forem legitimadas – pode, a rigor, colocar em dúvida princípios constitucionais e até criar instabilidade jurídica.

Um xeque-mate na Constituição, que, no caput do Art. 5º, assegura “que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza …”, e define, ao longo de 58 incisos e outras tantas alíneas, todo o arcabouço de direitos e garantias fundamentais.

Dependendo da palavra final do STF, a porta para que cada um deles possa ser questionado se escancara.

Atualmente, o Brasil adota políticas afirmativas para dois grupamentos: deficientes e mulheres. Mas essas excepcionalidades foram definidas em lei pela maioria dos deputados federais e senadores, como tem de ser, e não pelos ministros do Supremo.

Os deficientes são uma minoria com limitações objetivas. Ninguém questiona e muito menos atribui à lei que os beneficia qualquer similitude com as cotas raciais.

Para as mulheres, fixou-se a obrigatoriedade de os partidos políticos terem o mínimo de 20% de candidatos do sexo feminino. E este sim é um ótimo paralelo.

Ora, a lei que privilegia as mulheres vale para as siglas partidárias, não para as casas legislativas. Se aplicássemos a mesma regra que muitos pretendem para as cotas raciais haveria uma reserva de vagas nos parlamentos.

Mulheres seriam eleitas com menos votos que os homens do mesmo partido. Felizmente, mesmo com as cotas partidárias, elas só chegam ao Senado, à Câmara dos Deputados, aos legislativos estaduais e municipais se tiverem o mérito de serem escolhidas pela maioria dos eleitores.

Em defesa das cotas há argumentos que vão desde a purgação de culpa pelo abominável período escravocrata e de pós-escravidão à obrigação, também constitucional, de o Estado promover a igualdade. Mas esse, como é sabido, é um preceito que vale para todos. Pressupõe saúde, educação, moradia e vida digna para pretos, brancos, pardos, vermelhos, amarelos.

O tema jamais obterá consenso jurídico, muito menos de mérito. A decisão do Supremo será, quer se queira, quer não, de caráter político. E, nesse item, o governo do presidente Lula saiu na frente.

Embora não tenha obtido êxito em enfiar as cotas no Estatuto de Igualdade Racial aprovado na Câmara, seu ministro da área, Edson Santos, conseguiu ser maioria em número e voz nas audiências públicas promovidas pelo SFT no início deste mês.

Ainda assim, muitos dos argumentos favoráveis que arrebanhou podem agir no sentido inverso.

O diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Ipea, Marcos Lisboa, por exemplo, apresentou, ao defender as cotas, dados estatísticos alarmantes: 571 mil crianças brasileiras entre 7 e 14 anos ainda estão fora da escola. Dessas, 62% são negras. Isso se resolve com reserva de mercado no ensino superior?

Dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE demonstram que, mesmo depois das cotas, não passa de 4% o número de negros e pardos que concluem o curso superior. O fundo do buraco é, portanto, muito mais embaixo. Exige políticas públicas que antecedem, e muito, uma cota de acesso às universidades.

Ninguém em sã consciência discorda que o Brasil é um país de profundas desigualdades. Mas as cores são as menores delas.

Afinal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. É absurdo eleger benefícios pela cor da pele. Como se pobres de qualquer outra cor fossem menos pobres e necessitados do que pobres pretos e pardos.

Este artigo foi publicado originalmente no Blog do Noblat, em 14/3/2010.

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