A bomba atómica

Talvez explodisse a uma fulgurantíssima terça-feira. Ou a um domingo, apanhando a família a comer caranguejos, na casinha colonial que tínhamos em pleno musseque Sambizanga. Estava para explodir a bomba atómica que apagaria da face da terra a afrodisíaca insatisfação da humanidade. Continue lendo “A bomba atómica”

Deus já foi um Eusébio cósmico

Tenho uma saudade estrábica da missa de sábado às sete da tarde. Toda a gente sabe que a saudade tem problemas oftalmológicos, mas quem é que ainda sabe o que era a missa de sábado, que já valia como missa dominical, abrindo-me as portas a um domingo inteiro de praia, colonial e tropical, na Ilha de Luanda, ou nos mangais do km 36, antes do Miradouro da Lua? Continue lendo “Deus já foi um Eusébio cósmico”

A mulher irretocável

Tenho falado muito com jovens. O facto de eu usar chapéu facilita. No meu tempo, o chapéu preto era reaccionário, pidesco até, se ainda alguém sabe o significado destes coxos qualificativos. Havia uma excepção, o chapéu na cabeça de Bogart. A cabeça de Bogart enchia qualquer peito de admiração. Continue lendo “A mulher irretocável”

A culpa é de Chuck Norris

Estimado Woody Allen, eu pecador me confesso. Parte da culpa é minha. Quando o senhor Castello Lopes, nos meus tempos de director de programas, tentava vender à SIC os teus filmes, eu propunha-lhe sempre comprá-los por um terço do preço que custava um Chuck Norris. Ui, o teu orgulho artístico ferido. Continue lendo “A culpa é de Chuck Norris”

Os benefícios da calacice

Já houve um mundo perfeito, um tempo em que a palavra “senhor” não saíra ainda do dicionário. E era impossível, na Cinemateca de João Bénard, pensarmos neles sem lhes juntar a então respeitável qualificação: o senhor Alberto e o senhor Gil. Eram mais unha com carne do que Jack Lemmon e Walter Matthau. Lemmon e Matthau dançaram juntos a rumba, foram jornalistas siameses em The Front Page, mas “buddy, buddy” foram, nas suas excelsas vidas, o senhor Alberto e o senhor Gil. Continue lendo “Os benefícios da calacice”

Novos velhos suportes físicos

Não faz nem três meses que botei fora uma montanha de suportes físicos. Livros, DVDs, CDs, papéis, papéis, papéis – quilos e mais quilos e mais quilos de suportes físicos foram retirados de dentro do apartamento, como efeito colateral do tsunami que foi a descupinização e pintura da casa, que descrevi em diversos capítulos aqui. Continue lendo “Novos velhos suportes físicos”

Vi-lhes a alma

Não podemos ser todos Sócrates, pensou David E. Kelley, o produtor de Big Little Lies, pequena mini-série ovo, com clara televisiva e gema cinematográfica protegidas por robusta casquinha social. Não vi melhor este ano. Continue lendo “Vi-lhes a alma”

Quem dá o que tem no bolso…

Ela tira os óculos, que não por acaso lhe ficam bem, solta o cabelo apanhado, vira-se em valsa lenta, boca semiaberta, num sorriso que a ponta da língua interrompe tocando no canto direito do lábio superior. Distraído a abrir uma garrafa de “pretty good rye”, Bogart, que já estava a fazer conversa com ela há dez minutos, levanta a cabeça e, como se acabasse de ver nascer Vénus, solta o mais vivaldiano “hello” da história do cinema. Continue lendo “Quem dá o que tem no bolso…”

Ninguém manda nela

A última vaga reaccionária que anda a ver se acerta caneladas na liberdade artística chama-se “apropriação cultural”. Para os seus sicários, certos temas só podem ser tratados por artistas que deles tenham vivência identitária. Só cantaria o fado uma lisboeta branca, só pintaria os deuses indianos um pintor hindu, só um artista negro americano choraria o assassínio criminoso de outro negro por polícias brancos no Minnesota. Continue lendo “Ninguém manda nela”

O indissolúvel ménage à trois

Imaginem que Clark Gable, com cósmica bebedeira, espetava o carro a cem metros de um motel manhoso, na companhia de um irresistível par de pernas e de um ilegítimo palminho de cara. O estúdio dele, a MGM do poderoso Louis B. Mayer, mandava-lhe logo um pronto-socorro, Eddie Mannix. Continue lendo “O indissolúvel ménage à trois”

Um branco par de cuecas

“O realismo existe. É uma coisa.” É o que Harry Dean Stanton assevera – que é mais do que dizer – em Lucky, o mais belo filme do ano, garantem os meus olhos, coração e alma, se o velho Harry Dean não me convencesse de que a alma, ao contrário do realismo, não é uma coisa, logo não existe. Qual escola de Frankfurt, qual caneco, se posso também eu asseverar, este filme existe e é uma coisa. Continue lendo “Um branco par de cuecas”