Roubos e carnificinas

Será que, hoje, se podia escrever a história dos roubos e carnificinas dos mais mal-afamados piratas dos últimos vinte anos como a que escreveu o capitão Charles Johnson, no século XVIII? Atrevam-se a dizer-me um nome que, olhos nos olhos, faça frente ao de um Barba Negra! Continue lendo “Roubos e carnificinas”

Quem construiu o muro de Berlim?

É preciso gritar para corrigir a História. Quem construiu o muro de Berlim foi o cineasta Billy Wilder. Em 1961, no último estertor da Hollywood clássica, Wilder filmou One, Two, Three em Berlim e a vertiginosa velocidade das peripécias do filme forçou as pobres autoridades soviéticas – só podia, caro Jerónimo! – a proteger as cândidas almas germânicas dos cidadãos de Berlim Leste. Continue lendo “Quem construiu o muro de Berlim?”

Zé Mário, qual é a tua, ó meu?

Para onde foi, para tão longe, o Zé Mário que hoje nos deixou? Estava eu sentado, em Luanda, nos meus 17 anos, e quem me mostrou o primeiro álbum dele foi o Carlos Brandão Lucas. O nosso grande patrão Carlos, o António Macedo, o Artur Neves e o Emílio Cosme tinham-me adoptado e metido no programa Equipa, da Emissora Católica de Angola. E puseram-me a ouvir, e a Luanda inteira, o “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Continue lendo “Zé Mário, qual é a tua, ó meu?”

Talvez Umberto Eco venha almoçar

O que é que separa cada um de nós, condoídos mortais, de Umberto Eco? Vejamos, juraria que Eco ia gostar de comer uma cabeça de garoupa grelhada no Verde Gaio, como a que os meus amigos Manolo Bello, Francisco Balsemão e Pedro Norton partilharam comigo com a promessa de repetirmos ainda por cumprir. Umberto Eco havia de se lamber e relamber com o fondue de mariscos e peixes do Go Juu, ao lado do editor amigo Guilherme Valente ou do mais cinéfilos dos cirurgiões, o meu camarada António Setúbal. Continue lendo “Talvez Umberto Eco venha almoçar”

O prodigioso peito de Jane Russell

Se o gordinho Arbuckle não tivesse violado a inocente Virgina Rappe, se o realizador e actor William Desmond Taylor não tivesse sido assassinado com um tiro nas costas por sabe-se lá quem, talvez o cinema americano nunca tivesse adormecido à sombra do Código Hays. Escândalos, tiros, drogas e violações atraíram as moscas da Imprensa cor-de-rosa e os mil gritos das ligas de decência sobre a Hollywood dos anos 20. Continue lendo “O prodigioso peito de Jane Russell”

Sutiãs e négligés

Marilyn Monroe telefonou para casa de Billy Wilder. Atendeu-a a mulher dele. Com aquela voz que provocava arrepios a um eucalipto, pinheiro manso ou até a um rijo carvalho, Marilyn disse-lhe, “diga ao seu marido que se vá…” e usou como ponto de exclamação a expletiva palavra inglesa que começa por “f” e tem quatro impronunciáveis e por vezes aprazíveis letrinhas. Continue lendo “Sutiãs e négligés”

Pesca à linha

Nesse tempo ainda se ia à pesca. Foi há menos de um século, começo dos anos 30, que o escritor William Faulkner e o realizador Howard Hawks foram à pesca. Leva­ram o actor Clark Gable. Gable não sabia que Faulkner era um escritor, mas cheirou-lhe a inte­lec­tual e perguntou quem eram os melho­res escri­to­res. “Hemingway, Willa Cather, Tho­mas Mann, John dos Pas­sos e eu” res­pon­deu Faulk­ner, incluindo-se, sem falsa modés­tia. Gable ficou de boca aberta: “Você escreve, Mr. Faulk­ner?” “Sim, Mr. Gable. E o senhor o que faz?” Continue lendo “Pesca à linha”

De canhão apontado

Tiananmen é uma criação platónica do meu amigo Victor. A vagarosa humanidade abriu os olhos, espantada, em 1989, para os protestos na poética Praça da Paz Celestial, em Pequim. E abateu-se sobre as nossas almas o silêncio frio que precede a tragédia, quando um solitário cidadão chinês, singela camisa e calça, opôs a sua humilde fragilidade tolentina ao poder dos explicativos tanques que o comité central mandou para dissuasiva conversa com o povo da rua. Continue lendo “De canhão apontado”

Espanquem-me, sou um privilegiado!

Bret Weinstein tem a cara porreira e barbuda de esquerda que a esquerda tinha quando eu era de esquerda. Sejamos claros, Bret, professor de biologia na universidade americana de Evergreen, é de esquerda. Apoiou Bernie Sanders, fez músculo pelos ocupas de Wall Street. Fê-lo em nome da razão e da justiça social. Olha-se para a cara de Bret e apetece ir beber copos com ele. Continue lendo “Espanquem-me, sou um privilegiado!”

Larvas sociais

Nasceu no bairro de má fama de Filadélfia de onde vem o Rocky dos filmes. Tinha também punhos de pugilista, que usava sem cerimónia. Distingue-o, e talvez já seja eu a fazer-me interessante, a blenorragia ter sido o eixo da sua vida. Ia falar do cão francês, mas adiante. Continue lendo “Larvas sociais”

Vão-se lá fender

Ninguém voltará a pintar a mulher nua. A dulcíssima indolência carnal das “Banhistas” e das “Grandes Banhistas”, que Pierre-Auguste Renoir pintou há mais de cem anos, é varrida com escândalo para baixo do tapete pelo austero progressismo de género da revista New Yorker. Continue lendo “Vão-se lá fender”

Dá-me o teu sofrimento

Andava ele a matar Deus quando a conheceu. E nem foi ele que a descobriu, mas um Espírito Santo de orelha, o seu amigo Paul Rée. Adiante hei de falar eu da afrontosa trindade que juntos incarnaram. Agora apresento-os: ele é o filósofo Friedrich Nietzsche e ela é Lou Salomé, russa-alemã, romancista, poeta, filósofa, mais tarde psicanalista. Continue lendo “Dá-me o teu sofrimento”

Uma mulher

Nadavam nuas no Danúbio. E antes de falar de Hitler ou de Simone de Beauvoir, digo já os nomes dessas americanas que nadavam nuas ali perto de Budapeste. São mulheres mortas, mas estavam vivas nos anos 20 do século passado. Passaram cem anos e custa imaginar, à nossa vigilância policialmente correcta, a líquida liberdade de uma poeta, Edna St. Vincent Millay, e de uma jornalista, Dorothy Thompson, nesses anos em que nos querem fazer crer que a mulher ainda não existia. Continue lendo “Uma mulher”

As duas metades de um corpo

Quem cantou o Sexo Todo Poderoso foi Edna St. Vincent Millay. Cantou-o em verso e em público, na cama e fora da cama. A mãe dela, Cora, despachou um pai impertinente e, sozinha, criou Edna e as irmãs com hinos à natureza humana. Com a franqueza e sinceridade que nenhum ministro das finanças, nem mesmo o nosso heróico Centeno, há-de ter, Cora disse isto um dia: “Sou uma slut e criei as minhas filhas para serem umas sluts.” Continue lendo “As duas metades de um corpo”

Tanta vida, tanta morte

É rara a pessoa que só morre uma vez. Até James Bond nos aconselha a viver duas vezes para podermos morrer outras tantas. Mas ninguém morre tanto como o escritor. O escritor morre em cada personagem, falece-lhe a vida a cada romance que acaba. Machado de Assis morreu em Brás Cuba e foi já a sua finada mão a escrever essas memórias póstumas. Com o fino humor que só quem morreu tem. Continue lendo “Tanta vida, tanta morte”