New Deal 2.0

É como se o espírito de Franklin Roosevelt reencarnasse em Joe Biden. O novo presidente americano assume seu mandato hoje com um programa que é keynesianismo na veia. A exemplo do “New Deal”, que tirou os Estados Unidos da grande depressão dos anos 30, Biden pretende fazer frente à pandemia e à recessão econômica por meio da fórmula do economista britânico John Maynard Keynes: intervenção do Estado na economia por meio de um pacote de US$ 1,9 trilhão, expansão dos gastos públicos, foco na diminuição drástica do desemprego e na redução da desigualdade por meio de benefícios sociais.

Nos anos 30 a fórmula fez com que a concentração da riqueza nos Estados Unidos sofresse forte redução. Antes do New Deal rooseveltiano 1% dos americanos detinham 24% da renda nacional. O índice caiu para 16% em um curto espaço de tempo. Na época, o país viveu uma situação de pleno emprego, consolidou-se como a principal economia do planeta, liderou o mundo na Segunda Guerra Mundial e financiou a reconstrução da Europa.

Ao contrário do que diziam seus críticos, Roosevelt não implantou o socialismo na América. Salvou o capitalismo. Da mesma maneira o “New Deal” de Joe Biden não fará dos Estados Unidos um país socialista. Se lograr êxito, salvará a economia e os americanos da pandemia, reposicionando o país no tabuleiro mundial em que esteve ofuscado nos anos Trump.

Mais coincidências entre o ontem e o hoje: o antecessor de Roosevelt, o republicano Herbert Hoover, para fazer frente ao crash de 1929, adotou uma política isolacionista de proteção tarifária que foi responsável por uma queda de 46% das exportações americanas e pela perda de liderança dos Estados Unidos no enfrentamento da grande depressão. Qualquer semelhança com o fracasso de Trump no enfrentamento e de perda de competitividade da economia americana em relação à chinesa não é obra do acaso.

A missão de Biden é muito mais difícil do que foi a de Roosevelt.

O novo presidente quer os Estados Unidos sentado na cabeceira da mesa no concerto das nações. Mas o mundo unipolar do pós queda do muro de Berlim já não é o mesmo. A China ameaça seriamente a hegemonia americana e a União Européia cada vez mais opera em faixa própria, ora se aliando aos chineses, ora aos americanos. Esse é o sentido do acordo Bruxelas-China, assinado às vésperas da posse de Biden.

O plano do novo presidente para enfrentar a pandemia, recuperar os empregos e a economia estará acoplado a outra meta: a mudança da matriz energética e do próprio modo de estruturação das empresas, cada vez pautadas pelo conceito ESG (environmental, social and governance – ambiental, social e governança).

O plano de Trump era recuperar o emprego por meio da velha indústria baseada em combustíveis fósseis. Biden irá perseguir o pleno emprego por meio da economia limpa.

O retorno ao Acordo de Paris, ao acordo nuclear com o Irã e o restabelecimento das relações com Cuba fazem parte dessa nova realidade e da necessidade de os Estados Unidos retomarem a liderança mundial, duramente afetada pelo isolacionismo de Trump. Nas relações externas sai a “Diplomacia Dura” de Mike Pompeo, secretário de Estado do governo que se encerrou, e retorna o soft power.

Não serão menores os impactos internos do seu  pacote de US$ 1,9 trilhão. Só para se ter uma idéia: o auxílio emergencial de US$ 600 pulará para US$ 2 mil. Só essa medida retirará 11 milhões de pessoas da linha da pobreza, que cairá de 12,6% para 9% dos americanos.

A cereja do bolo é a previsão de dobrar o salário mínimo, atualmente de US$ 7,5 por hora, passando para US$ 15 por hora, e de alcançar o pleno emprego, puxando o desemprego de 6,7% para 4% ainda neste ano. O plano distribui dinheiro para os mais pobres, injeta recursos na economia e no combate à pandemia, diminui imposto de renda para a classe média e aumenta o imposto dos mais ricos. Mais Keynes do que isso, impossível.

Faltaria apenas dotar todos os americanos de uma cobertura pública na saúde, causa que os Estados Unidos debatem desde 1910 e que apenas deu um pequeno passo com o Obamacare, desidratado por Trump.

O Neal Deal 2.0 deverá enfrentar fortes resistências, tanto no Congresso americano como no mundo empresarial. Apesar de as pesquisas apontarem uma queda de 11 pontos na aprovação de Donald Trump após o atentado ao Capitólio, o trumpismo ainda conta com uma forte base social suscetível à pregação de que Joe Biden implantará o socialismo.

Roosevelt também travou duras batalhas no Congresso e nos tribunais. Só conseguiu executar o New Deal plenamente depois de sua vitória massacrante na reeleição, quando venceu em quase todos os estados, com exceção de Maine e Vermont. Seu adversário, o republicano Alf Landon, teve apenas oito delegados no colégio eleitoral.

Os republicanos correrão esse risco daqui a quatro anos se não entenderem que o plano Biden é o caminho mais viável para salvar o capitalismo americano e para garantir a estabilidade da maior democracia do mundo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 20/1/2020. 

 

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