Os dentes de Bakunine

O russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunine ainda tinha dentes quando se encontrou, em Paris, com o alemão Karl Marx. Faço gosto em lembrar que a revolução não estava então de quarentena: era globalizante e viajava que se fartava. Reescreva-se a história: não foi o capitalismo, foi a revolução, as internacionais socialistas, com os seus eslavos, alemães, franceses, Garibaldi e os primos dele, que inventaram a globalização.

E, digo eu, fizeram-no na peugada dos nossos navegadores, como escreve en passant Marx, no Manifesto Comunista, nesse tempo em que, mesmo Marx, podia chamar “descobertas” às navegações dos desdentados lusitanos.

Já se viu que, com a minha técnica de crochet, não dou ponto sem nó: eis o que une o anarquista Bakunine aos descobrimentos, o escorbuto. Em Paris, Bakunine bem podia ter beijado Marx, ainda tinha os dentes todos. Bastaria a Bakunine inclinar-se um bocadinho dos seus quase dois metros para o metro e setenta de Marx. O colossal Bakunine, no ano de 1848 em que as bocas das nações europeias regurgitavam revoluções, arrastou o imenso armário que era o seu corpo pelas capitais em que houvesse barricadas, fogo, sangue e gritos. Diga-se, os furúnculos de Marx – chegou a ter três em simultânea impiedade, um na virilha, outro na omoplata, e o terceiro na inquieta nádega – não o ajudaram, forçando-o a uma vida doméstica preenchida por excitantes fugas aos merceeiros, alfaiates e outros credores.

Mas vejam, as execráveis autocracias europeias, o nefasto suíço, a insidiosa França, o espúrio belga, a torpe Alemanha, uniram-se para encostar Bakunine à parede e condenam-o à morte. Ora, o Czar da imensa e pungente Rússia reclama para si aquele pedaço de homem. Quere-o em prisão perpétua.

Antes já o Czar expropriara Bakunine do seu belo património. Como qualquer grande revolucionário, Bakunine era rico e aristocrata, o que os espanhóis chamariam um señorito. Marx era de família burguesa e casou com uma condessa, a estóica Jenny von Westphalen. Mas se continuo nesta deriva, ainda acabo a dizer que Álvaro Cunhal ou esse grande educador que foi Arnaldo de Matos eram operários metalúrgicos do Barreiro…

O Czar enfiou o aristocrata Bakunine numa minúscula cela da Fortaleza de São Pedro e São Paulo: três anos para a sossega, a que logo se somaram mais quatro nas caves sórdidas do castelo de Shlisselburg. Não sei se a dieta que deram a Bakunine era ou não vegan, mas num sofrimento atroz caíram-lhe todos os dentes. Chegou a pedir ao irmão veneno para se matar. Diz-se que resistiu rememorando dia a dia o mito de Prometeu, esse infeliz Titã que Zeus amarrou a uma rocha, todos os dias uma águia lhe vindo debicar o fígado que se regenerava durante a noite.

Mas eis que morto um Czar, logo outro nasce e o novo Czar o manda para a Sibéria. Os governadores, administradores, não havia um que não fosse primo de Bakunine, no que me atrevo a imaginar uma espécie de tributo avant la lettre à nossa burguesia em tempos de salazarismo. Facilitaram o primo, como até a Pide, em certos casos primos, facilitava. E Bakunine convence o capitão de um libertador barco americano, esconde-se no porão e viaja, primeiro para o Japão, depois para San Francisco, aonde chega um século antes do libertário movimento hippie.

Bakunine foi gigantesco, expansivo, arrebatador, inimigo radical de toda a forma de autoridade, a do estado, a de Deus, e a que Marx vendia sob o nome de ditadura do proletariado, como se fosse um caramelo de Badajoz. Bakunine sabia o mal que isso faz aos dentes.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *