O povo dança e canta nas ruas

No dia em que o povo cantou e dançou nas ruas, vi um homem chorar, e pequei o pecado da inveja. Uma danada de uma inveja daquela gente toda que cantava e dançava nas ruas, e do homem que chorou.

O cara se chama Van Jones; é um sujeito bonito, bela voz, belo porte. É advogado, escritor, foi conselheiro do governo Barack Obama em 2009. Nos últimos dias, vinha vendo Van Jones como um dos quatro comentaristas políticos sentados em uma longa mesa no centro da qual está o âncora Anderson Cooper, da CNN. Senta-se à esquerda do âncora, entre este e Rick Santorum, que já foi deputado e senador conservador pelo Partido Republicano.

Nestes dias todos que antecederam o 3 de novembro das eleições americanas, e nos que vieram depois dele, na never ending apuração, vi várias discussões entre os dois – educadas, polidas, mas os dois com suas posições firmes, Santorum, aquela figura típica dos wasps, brancos anglo-saxões protestantes, Van Jones com aquela postura que não poderia ser mais digna, mais elegante, do negro que ralou, trabalhou, estudou, estudou, estudou e virou parte da elite.

Hoje, um tanto depois do meio-dia no nosso horário, antes de 10 da manhã no horário da Costa Leste,  no momento em que as redes de TV e sites dos jornais americanos anunciaram que Joe Biden estava eleito, corremos para ligar na CNN. E Van Jones estava chorando.

O que Van Jones disse diante das câmaras da CNN, ao vivo, tomado pela emoção que não conseguia conter, foi uma das coisas mais emocionantes deste dia absolutamente histórico, este 7 de novembro que jamais será esquecido:

– “É mais fácil ser pai esta manhã, é mais fácil dizer para seus filhos que ter caráter importa, que dizer a verdade importa. Que ser uma boa pessoa importa.”

“Você se preocupa com os filhos, com a sua irmã e ela não poder ir ao Walmart e voltar ao carro sem alguém dizer algo para ela. E você gasta muita energia apenas para conseguir um pouco de paz.”

“Quero que eles vejam isso”, disse, sobre seus filhos. “É fácil usar o método mais barato e sair impune, mas tem um retorno. É um bom dia para este país.”

Não só para seu país, meu caro Van Jones. Para o mundo inteiro.

***

Qualquer pai ou mãe sabe muitíssimo bem do que Van Jones estava falando.

Minha filha nasceu no ano em que a ditadura militar assassinou, nos porões do DOI-Codi, na Rua Tutóia, o jornalista Vlado Herzog e o operário Manoel Fiel Filho.

Minha neta chegou aos 7 anos de idade e aprendeu a ler quando está na Presidência da República um sujeito que não pára de elogiar a ditadura militar que torturou e assassinou Vlado, Manoel e milhares de brasileiros, e tem como um de seus braços-direitos um general que foi ajudante de ordens de Silvio Frota, que era o ministro do Exército no ano da morte de Vlado e Manoel.

É triste demais criar filhos num país em que ter caráter não importa, dizer a verdade não importa, ser uma boa pessoa importa.

Está coberto de carradas de razão esse rapaz Van Jones quando diz que este foi um bom dia para seu país. Seu país, hoje, começou a ficar livre do político ególatra, narcisista, irresponsável, autoritário, antidemocrático, que não tem empatia pelas pessoas.

E por causa disso as cidades dos Estados Unidos se encheram de gente que cantava e dançava nas ruas.

(Dar o título “O povo canta e dança nas ruas” é o sonho de nove entre dez jornalistas.)

Deu uma inveja danada.

***

Graças à luta incansável de milhares, milhares, milhares de brasileiros, e de grandes líderes políticos como Tancredo, Ulysses, Montoro, Brizola, Severo Gomes, Teotônio Vilela, Fernando Henrique e tantos, tantos, tantos outros, este país se viu livre da ditadura, e minha filha cresceu numa democracia.

É perfeitamente possível que dentro de mais dois anos a gente se livre do triste clone de Donald Trump que ocupa a Presidência, e Marina possa, como a mãe no passado, e como agora os filhos de Van Jones e dezenas de milhões de americanos, viver num ambiente em que haja mais solidariedade, união, conversa, paz, do que eterna demonização do diferente.

A questão, o que dá uma inveja danada, é que ainda não consigo ver, no Brasil, alguém parecido com Joe Biden.

***

O texto aí está bastante abaixo do que eu gostaria de escrever no meu site neste dia histórico. Mas, diacho, foi o que o meu coração me fez escrever.

Em compensação, aqui abaixo vai uma pérola – a íntegra do discurso de vitória de Joe Biden como 46º presidente dos Estados Unidos da América.

Vi muita gente, ao longo da campanha, menosprezando Joe Biden. Toda a postura dele nestes últimos dias demonstra que ele é o grande político de que os Estados Unidos – e o mundo – precisam demais neste momento.

O discurso de vitória que ele pronunciou na cidade em que fez sua carreira política, Wilmington, Delaware, é coisa de estadista.

Depois de quatro anos de um ególatra presunçoso, autoritário, anti-ciência, anti-verdade, negativista, um piromaníaco que luta pela guerra entre nós e eles, como soam bem palavras sensatas, calmas, tranquilizadoras, de bom senso, de sabedoria, que conclamam pela união, peace and understanding!

Católico, Joe falou aos folks dele sobre o trecho da Bíblia que diz que há tempo para tudo, e agora é o tempo de curar. Os mais letrados dizem que é do Eclesiastes, um salmo do Rei Salomão, filho de Davi. É, mas, mais que isso, é da canção folk de Pete Seeger, o humanista que lutou a vida inteira pelo bem e teve a sorte de viver para cantar na posse de Barack Obama, de quem Biden foi vice:

To everything (turn, turn, turn)

There is a season (turn, turn, turn)

And a time to every purpose, under heaven

A time to be born, a time to die

A time to plant, a time to reap

A time to kill, a time to heal

A time to laugh, a time to weep.

Ao discursar pela primeira vez como 46º presidente eleito dos Estados Unidos,  após sua bela, forte, carismática vice Kamala Harris, Joe Biden disse que este é um tempo para curar as feridas.

Eis a íntegra, na tradução feita pelo Estadão:

“Uma nação unida. Uma nação fortalecida. Uma nação curada. Os Estados Unidos da América. Meus companheiros americanos, o povo desta nação falou. Eles nos deram uma vitória clara. Uma vitória convincente. Uma vitória para “Nós, o Povo”.

Ganhamos com o maior número de votos já concedidos para uma chapa presidencial na história desta nação – 74 milhões.

Sinto-me humilde pela confiança e segurança que vocês depositaram em mim. Prometo ser um presidente que não busca dividir, mas unificar.

Quem não vê os estados Vermelho e Azul, mas sim Estados Unidos. E que trabalhará de todo o coração para conquistar a confiança de todo o povo.

Pois é disso que se tratam os Estados Unidos: o povo. E é disso que se tratará a nossa Administração. Procurei este cargo para restaurar a alma dos Estados Unidos. Para reconstruir a espinha dorsal da nação – a classe média.Para tornar os Estados Unidos respeitado em todo o mundo novamente e nos unir aqui em casa.

É a honra de minha vida que tantos milhões de americanos tenham votado por esta visão. E agora o trabalho de tornar essa visão real é a tarefa de nosso tempo.

Como já disse várias vezes, sou o marido de Jill. Eu não estaria aqui sem o amor e o apoio incansável de Jill, Hunter, Ashley, todos os nossos netos e seus cônjuges, e toda a nossa família.

Eles são meu coração. Jill é uma mãe – uma mãe militar – e uma educadora. Ela dedicou sua vida à educação, mas ensinar não é apenas o que ela faz – é quem ela é. Para os educadores da América, este é um grande dia: vocês terão um na Casa Branca e Jill será uma excelente primeira-dama.

E terei a honra de servir com uma vice-presidente fantástica – Kamala Harris – que fará história como a primeira mulher, a primeira mulher negra, a primeira mulher descendente do sul da Ásia e a primeira filha de imigrantes a ser eleita para um cargo nacional neste país .

á passou muito tempo e lembramos esta noite de todos aqueles que lutaram tanto por tantos anos para fazer isso acontecer. Mas, mais uma vez, os Estados Unidos dobraram o arco do universo moral em direção à justiça.

Kamala, Doug – goste ou não – vocês são família. Vocês se tornaram Bidens honorário e não há saída. A todos aqueles que se voluntariaram, trabalharam nas urnas no meio desta pandemia, funcionários eleitorais locais – vocês merecem um agradecimento especial desta nação.

À minha equipe de campanha, e a todos os voluntários, a todos aqueles que tanto se deram para tornar este momento possível, devo tudo a vocês.

E para todos aqueles que nos apoiaram: Estou orgulhoso da campanha que construímos e realizamos. Estou orgulhoso da coalizão que formamos, a mais ampla e diversa da história.

Democratas, republicanos e independentes. Progressistas, moderados e conservadores. Jovem e velho. Urbano, suburbano e rural. Gay, hetero, transgênero. Branco. Latino. Asiático. Americano nativo.

E especialmente para aqueles momentos em que esta campanha estava em seu ponto mais baixo – a comunidade afro-americana se levantou novamente por mim. Eles sempre estão atrás de mim e eu vou protegê-los.

Eu disse desde o início que queria uma campanha que representasse os Estados Unidos da América, e acho que fizemos isso. É assim que eu quero que o governo se pareça. E para aqueles que votaram no presidente Trump, entendo sua decepção esta noite.

Eu mesmo perdi algumas eleições. Mas agora, vamos dar uma chance um ao outro. É hora de colocar de lado a retórica dura.

Para baixar a temperatura. Para se ver novamente. Para ouvir um ao outro novamente. Para progredir, devemos parar de tratar nossos oponentes como nossos inimigos. Não somos inimigos. Nós somos americanos.

A Bíblia nos diz que para tudo há um tempo – um tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear. E um tempo para curar. Esta é a hora de curar.

Agora que a campanha acabou – qual é a vontade do povo? Qual é o nosso mandato?

Acredito que seja o seguinte: os americanos nos convocaram para organizar as forças da decência e as forças da justiça. Para comandar as forças da ciência e as forças da esperança nas grandes batalhas de nosso tempo.

A batalha para controlar o vírus. A batalha para construir prosperidade. A batalha para garantir os cuidados de saúde da sua família. A batalha para alcançar a justiça racial e erradicar o racismo sistêmico neste país. A batalha para salvar o clima.

A batalha para restaurar a decência, defender a democracia e dar a todos neste país uma chance justa. Nosso trabalho começa com o controle da Covid.

Não podemos consertar a economia, restaurar nossa vitalidade ou saborear os momentos mais preciosos da vida – abraçar um neto, aniversários, casamentos, formaturas, todos os momentos que mais importam para nós – até que tenhamos esse vírus sob controle.

Na segunda-feira, nomearei um grupo de cientistas e especialistas líderes como Conselheiros de Transição para ajudar a pegar o plano Biden-Harris para a Covid e convertê-lo em um plano de ação que começa em 20 de janeiro de 2021.

Esse plano será construído sobre os alicerces da ciência. Será construído com compaixão, empatia e preocupação. Não pouparei esforços – ou comprometimento – para reverter essa pandemia.

Concorri como um democrata orgulhoso. Agora serei um presidente americano. Eu vou trabalhar tão duro para aqueles que não votaram em mim – quanto para aqueles que votaram.

Que esta era sombria de demonização nos Estados Unidos comece a terminar – aqui e agora. A recusa de democratas e republicanos em cooperar uns com os outros não se deve a alguma força misteriosa fora de nosso controle.

É uma decisão. É uma escolha que fazemos. E se pudermos decidir não cooperar, então podemos decidir cooperar. E acredito que isso faz parte do mandato do povo americano. Eles querem que cooperemos.

Essa é a escolha que farei. E peço ao Congresso – tanto democratas quanto republicanos – que faça essa escolha comigo. A história americana é sobre a lenta, mas constante expansão das oportunidades.

Não se engane: muitos sonhos foram adiados por muito tempo. Devemos tornar a promessa do país real para todos – não importa sua raça, sua etnia, sua fé, sua identidade ou sua deficiência.

Os Estados Unidos sempre foram moldados por pontos de inflexão – por momentos em que tomamos decisões difíceis sobre quem somos e o que queremos ser.

Lincoln em 1860 – vindo para salvar a União. FDR [Franklin Delano Roosevelt] em 1932 – prometendo a um país sitiado um New Deal. JFK em 1960 – prometendo uma Nova Fronteira. E há doze anos – quando Barack Obama fez história – e nos disse: “Sim, nós podemos.”

Estamos novamente em um ponto de inflexão. Temos a oportunidade de derrotar o desespero e construir uma nação de prosperidade e propósito.

Nós podemos fazer isso. Eu sei que podemos. Há muito tempo falo sobre a batalha pela alma desta nação. Devemos restaurar a alma dos Estados Unidos.

Nossa nação é moldada pela batalha constante entre nossos melhores anjos e nossos impulsos mais sombrios. É hora de nossos melhores anjos prevalecerem. Esta noite, o mundo inteiro está assistindo. Acredito que, no nosso melhor, os Estados Unidos são um farol para o mundo.

E não lideramos pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo. Sempre acreditei que podemos definir os EUA em uma palavra: possibilidades.

Que nos Estados Unidos todos devem ter a oportunidade de ir tão longe quanto seus sonhos e habilidades dadas por Deus os levarem. Você vê, eu acredito na possibilidade deste país.

Estamos sempre olhando para frente. Rumo a uma país mais livre e justo. Rumo a um país que cria empregos com dignidade e respeito. Rumo a um país que cura doenças – como câncer e Alzheimer.

À frente de um Estados Unidos que nunca deixa ninguém para trás. Que nunca desiste, nunca desiste.

Esta é uma grande nação. E nós somos boas pessoas. Estes são os Estados Unidos da América.

7 e 8/11/2020

5 Comentários para “O povo dança e canta nas ruas”

  1. Bom…, e aqui no Brasil o freio para o desenvolvimento continua. Relembrando algo bem recente, na política também. Nossa enganação emotiva diária. Observe:

    Com a “Copa das Copas®” do PT® em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis!

    E não esquecer. Eis:
    Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, hercúlea,
    mas aparentemente dominados e encantados!
    apenas pelo nome de um só homem [lula]
    cujo poder não deveria assustá-los,
    visto que é um só (lula –, o vigarista apedeuta).

    O PT é puro putifarismo. Os petistas são putifaristas.

    Prejuízos do PT ainda permanece. As consequências.

  2. Também fiquei alegre com a vitória de Biden.
    O energúmeno vai desaparecer da Casa Branca para dar lugar a um homem educado, simpático, decente, respeitador, civilizado.
    Vai ter um trabalho danado pela frente, lá isso vai.
    Eu ficarei muito feliz se ele tiver sucesso.

  3. Beleza de texto o do Biden.
    Que Deus o proteja,

  4. É espantoso que o abominável Trump tenha recebido mais de 73 milhões de votos.
    Como é possível que uma pessoa tão desprovida de qualidades tenha a confiança de tantos cidadãos?
    Algo vai muito mal nos Estados Unidos.

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