O calibre do perigo

A reação das instituições aos constantes ataques à democracia brasileira mudou de patamar. Dois fatos são indicadores desta situação.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, aceitou o pedido do Procurador Geral da República, Augusto Aras, um aliado do presidente, de instalação de inquérito para investigar os atos pró-ditadura realizados em frente a quartéis. Um deles com a presença de Jair Bolsonaro, ao lado dos portões de entrada do Quartel General do Exército em Brasília onde se situa o Gabinete do Comandante do Exército.

As Forças Armadas, por sua vez, se distanciaram do discurso contra a democracia. Após consulta aos comandantes das três armas, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgou nota oficial, reafirmando sua obediência à Constituição, como tem se pautado desde a redemocratização do país.

Não se pode subestimar esses dois fatos. Eles rompem com o ciclo de se contrapor à escalada autoritária apenas por meio de declarações.

O Procurador Geral da República teve de se movimentar. Mesmo que sejam procedentes as suspeitas de que teria blindado previamente Bolsonaro ao excluí-lo do escopo do inquérito e apenas investigar a autoria dos atos, seu pedido visou a atender à pressão da sociedade civil para que a democracia acione seus mecanismos de defesa.

À primeira vista, o presidente não teria com o que se preocupar por não ser objeto da investigação. Mas não é bem assim. O que Ulysses Guimarães dizia das CPIs vale para outros tipos de investigações: é possível saber como começam, mas não como terminam. Ao investigar a autoria e quem financiou os atos, o inquérito pode chegar a parlamentares ligados ao governo e ao chamado gabinete do ódio.

E se as investigações chegarem ao seu núcleo familiar?

Há um precedente de um presidente que não era alvo de investigação mas foi letalmente atingido por uma delas. Getúlio Vargas não era objeto do IPM instalado para investigar o atentado a Carlos Lacerda, mas quando as investigações chegaram ao seu irmão Benjamin Vargas, seu governo chegou ao fim de forma dramática.

O atual inquérito tem potencial para agravar a instabilidade de um governo que não conta com base parlamentar sólida e vive em guerra declarada com Congresso Nacional e o Supremo.

Nos tempos da ditadura, costumava-se interpretar os pronunciamentos dos militares por suas entrelinhas. Desde a redemocratização as Forças Armadas se mantiveram em silêncio sobre questões não afetas às suas atividades profissionais. Se voltaram a marcar posição é porque vivemos tempos anormais, agravados pela grave pandemia que se abate sobre a saúde pública.

Como no passado, é preciso entender o contexto da nota oficial desautorizando as manifestações.

Na noite de domingo o núcleo militar do governo, do qual participa o próprio ministro da Defesa, ainda não havia visto nada de anormal na participação do presidente em um ato no qual se pregava o AI-5, o fechamento do Congresso e do STF. Apenas acharam que Bolsonaro se empolgou. O chamado núcleo militar não tinha captado a enorme insatisfação da cadeia de comando das três armas com os atos, bem como de militares de alta patente que não fazem parte do governo.

A pregação em frente aos quartéis foi mais um passo na politização da tropa, porta pela qual a quebra da disciplina e da hierarquia sempre adentrou.

Os militares sentiram o calibre do perigo de serem arrastados para uma aventura por causa do canto fúnebre que o marechal Castello Branco chamou de vivandeiras e que desde 1930 rondam os quartéis. Nas entrelinhas mandaram seu recado: “As Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”.

Esse é o lado positivo. As Forças Armadas parecem não estar dispostas a abrir mão do ativo conquistado a duras penas: o respeito e a admiração dos brasileiros por se aterem às suas funções definidas pela Constituição. Se o presidente extrapolar e apelar para estado de sítio, receberá o mesmo não que os militares deram a Dilma quando a então presidente pretendeu abortar seu impeachment com a decretação de estado de defesa.

O lado ruim é que temos um presidente que assume o papel de vivandeira e vai para frente de quartel para fazer questionável discurso político, um ato que pode ser qualificado como crime de responsabilidade.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 22/4/2020. 

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