O amor nos tempos do coronavírus

Uma janela de décimo andar é um bom lugar para um sujeito aborrecido se apoiar nos cotovelos e apreciar a paisagem. O duro é que nada muda na paisagem. Fazia já duas semanas que se isolara para fugir do vírus. Nem mesmo na vizinhança havia novidade. Em um prédio, um pouco distante, via uma mulher à janela. Sempre a mesma, na mesmíssima janela.

Em certo momento, percebeu o seguinte. A mulher o via, sempre o mesmo, na mesmíssima janela. Provavelmente estava só e confinada, como ele. Tomou a decisão. Pôs-se a fazer sinais com os braços erguidos. Isso poderia ser um fato novo na vida de ambos. Para sua surpresa, a mulher respondeu, com gesto igual. Nos dois dias seguintes, cumprimentaram-se dessa maneira.

Então, ele ousou. Escreveu em letras grandes, em uma cartolina. “Seu número celular”. Passou bom tempo, ela mostrou folhas de caderno emendadas. “Estou sem celu”. Ficou por isso… Ora, na manhã do dia seguinte exibiu mais uma cartolina outdoor. “Endereço prédio/Nº apartam.” E ela respondeu com folhas emendadas.

Eram 11 horas quando se apresentou na recepção do prédio. Deu o número do apartamento. A proprietária autorizou a entrada. Logo, do lado de dentro de uma porta estava uma mulher ansiosa, pensando em como seria o homem da janela. Do lado de fora, o próprio se mordia de curiosidade para conhecer a mulher da janela. A porta se abre.

Ele se vê diante de uma coroa simpática, vestida sem afetação, mas com graça… bonita. Sim, a beleza de quem chega bem aos 63 anos. Por sua vez, ela apreciou o coroa bem apessoado, nos seus 65 anos.

– Sou Rafael, muito prazer em conhecê-la, minha senhora.

– Sou Eliana. O prazer é todo meu, mas me livre desse “senhora”.

Boa descontração, bom início. Sentaram cada um em uma poltrona da sala. A conversa foi correndo… O celular faz falta, mas o da filha quebrou. Filhos, filhas, a família, o destino, ela viúva, ele desquitado.

– Aceita um café?

– Você não sabe com que prazer. Adoro café, mas não sei fazer. Cumpro a quarentena no apartamento do filho solteiro, que está viajando. Nem cafeteira tem…

Nem cafeteira, nem micro-ondas, e com fogão não se entende.

– Mas… mas…  como se alimenta?

– Sanduíche, peço o delivery.

Ah, tadinho.

–  Não, senhor, isso não é possível. Você vai fazer as refeições aqui em casa. E olhe, cozinho muito bem!

– Adianto-lhe que sou um bom gourmet.

– Oh! – fez ela, fascinada.

Alguns dias depois, a filha recebe uma ligação no celular que era da mãe. Número desconhecido. Mas atende.

– Mamãe? De quem é esse cel…

Ouve um pouco e se espanta:

– Você o que?!

A mamãe comunicava que estava muito bem e feliz em seu reconhecimento. Eis a última frase, que surpreendeu:

– Estou em lua de mel.

Abril de 2020

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Anotações de um confinado, volume 2. 

Anotações de um confinado, volume 1

5 Comentários para “O amor nos tempos do coronavírus”

  1. Gosto do micro-conto. Uma ficção plausível, quase a 4Julio Verne. Não conhecia o Waldir Sanches. ws

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