Marina, a quarentena e as telas

Para a telenetada desta quarta-feira, a 18ª desde o início do confinamento, Marina pediu autorização para usar o laptop da mãe. Autorização dada, lá foi ela nos levando da sala para seu quarto, juntamente com o laptop e mais o Érolti e o Elmo.

Fiquei, do lado de cá da Avenida Sumaré, um tanto preocupado por a pequena estar carregando tantas coisas corredor afora – ainda mais porque a porta do quarto dela tem ficado fechada, para que a Mel, a gata, não entre e destrua o clubinho, a cabana criada pela mãe e por ela atrás da cômoda. Mas deu tudo certo, ela não deixou cair nada.

O “nos levando para o quarto” é o jeito dela de falar que está carregando o iPad da mãe no qual nos vê. Ao longo de todas as nossas telenetadas, volta e meia ela diz isso: – “Vou levar vocês ali para a mesinha.” – “Vou levar vocês para a sala.” – “Vou botar vocês no chão.”

No quarto, nos colocou em cima da cama, e disse que iria preparar o computador da mamãe. O que ela queria era uma página em branco em que pudesse escrever. Houve lá alguma coisa, ela encostou em alguma tecla, o documento desapareceu, ela não soube resolver, teve que pedir a ajuda do papai.

Documento aberto na frente dela, ficou trabalhando ali um pouco, vovô e vovó vendo o rostinho lindo de perfil.

Um pouco depois, nos mostrou o que havia produzido lá. E também outras coisas que estava aprendendo a fazer no computador.

Mas logo foi iniciando uma história, um faz-de-conta, em que ela mais uma vez era a Astrid, e o Érolti, o ursão grandão e simpático da foto acima, era o Soluço, a vovó, a Heather, e eu, o Perna de Peixe. Um lago de lava havia tomado conta do chão do quarto. Ela achava que a lava iria também em direção a Gardênia, e seria preciso avisar as amigas dela, as Winx – e então escreveu (faz-de-conta) uma mensagem no computador para a Flora, que é a Winx de quem ela mais gosta. Daí a pouco nos avisou que Flora havia respondido (e nos mostrou a mensagem faz-de-conta no computador da mamãe dela). Na mensagem, Flora agradecia muito pelo aviso, e dizia que elas e as amigas haviam se mudado para um lugar seguro, onde a lava não chegaria.

E aí Astrid-Marina, 7 anos e 1 mês, há 5 semanas em confinamento por causa do novo coronavírus, simplesmente deixou o computador da mamãe de lado, e mergulhou em mais uma viagem ao faz-de-conta com o vovô e a vovó.

Como tem feito muito nas últimas semanas, baseou sua fantasia nos personagens de Como Treinar Seu Dragão – Astrid, Soluço, Heather, Perna de Peixe, etc, etc, etc –, mas misturando personagens do desenho Winx. São as duas séries em que ela está viciada, para usar a expressão que ela mesma gosta de falar.

Essa fascinante aptidão por misturar histórias não é de hoje. Faz muitos, muitos meses que Marina adora incrustar em um faz-de-conta envolvendo personagens do Frozen, por exemplo (ela Elsa, é claro; a vovó, Anna, e o vovô, Krystoff), gente de outras histórias/filmes/séries, como Elena do Reino de Avalor ou a Princesinha Sofia.

***

A Covid-19 veio subverter a forma com que Marina lidava com as telas, o admirável mundo novíssimo da comunicação digital.

Carlos e Fernanda desde sempre tiveram uma posição absolutamente inteligente, sensata, correta, sobre a convivência criança-telas. Desde sempre defenderam que, como as crianças são forçosamente, naturalmente atraídas para os celulares, tablets, cabe aos pais organizar a coisa, para que não vire zorra, descontrole, vício. Remando contra a corrente dos pais deslumbrados, preguiçosos ou irresponsáveis, estabeleceram regras e limites para o uso de smartphones, de iPads e mesmo da TV pela pequena.

Marina sempre teve horário para ver TV. Tantos minutos no fim da manhã, tantos minutos à noite antes de dormir. iPad, só tantos minutos por dia.

Mas eis que chega a roda viva e carrega a gente pra lá. Chegou o novo coronavírus, e o dia 13 de março foi o último em que a vovó visitou Marina. Eu mesmo a vi pessoalmente pela última vez antes ainda, acho que no dia 11 de março. No dia 15, o dia dos 7 anos dela, já não estivemos juntos: já estava claro que o melhor era optar pelo confinamento.

No dia 18 de março, seguindo o bom-senso, a razão e as orientações da Secretaria Estadual da Educação, o Colégio Equipe fechou. Marina passou a ter os trabalhos de casa recebidos via tela.

E desde então Marina está, assim como as pessoas que sabem somar 1 + 1, em todo o planeta, confinada, sem sair de casa.

É antinatural, é o horror dos horrores, é o fim do mundo você manter dentro de casa uma criança de 7 anos, com aquela energia maior do que a de todas as turbinas de Itaipu.

E então aconteceu que, depois de anos e anos de cuidadoso controle, não tinha outro jeito – e mamãe e papai flexibilizaram as relações de Marina com as telas.

Sem telas, Marina não poderia ter escola. Não poderia mais – só para dar um exemplo – brincar com vovô e vovó.

***

Mary e eu vemos Marina em média duas vezes por semana, desde sempre, desde que ela nasceu. Marina se acostumou a nos ver, a brincar com a gente sempre, sempre, sempre. Temos a imensa sorte de morar bem perto, ela lá do outro lado da avenida, nós aqui deste lado.

A verdade dos fatos é que o confinamento nos fez brincar mais com Marina do que vínhamos brincando nos últimos 7 anos.

Eram duas vezes por semana. Agora são umas cinco.

E as telas são apenas o meio. Marina continua brincando conosco exatamente do mesmo jeito com que brincávamos juntos – com a única diferença, é claro, de que não nos pegamos fisicamente, não nos abraçamos, não nos beijamos.

Mas, ao brincar conosco, Marina continua sorrindo tão contente quanto antes.

Está aprendendo a usar as teclas para escrever. Tem escrito suas primeiras mensagens, depois de ter dominado o envio de mensagens de voz. E está escrevendo muito bem, muito direitinho, para imenso orgulho do vovô eterno copydesk.

Não é exatamente a forma de aproximação das telas e das teclas que o pai e a mãe desejavam – mas, diacho, veio aí a roda viva e carregou o mundo inteiro pra lá.

E a verdade é que, tretou, relou, a pequena deixa de lado esse negócio de computador e cai na imaginação, na fantasia, no faz-de-conta, nas brincadeiras de sempre.

Nesta quarta, depois da aventura de Astrid e amigos com a lava que invadia o quarto dela, Marina propôs que vovô e vovó pegassem duas canetinhas cada um, uma folha de papel, uma tesoura… e a acompanhassem, passo a passo, no processo de elaborar um origami de uma gatinha.

Foi nos ensinando, passo a passo. Ia desenhando, mostrando, e examinando os nossos trabalhos.

Exatamente como se estivéssemos juntinhos.

22/4/2020

Um P. S. :

É preciso registrar: já escrevi esta anotação pensando em publicar.

Faço anotações na Agenda do Vó sempre que posso – e são anotações para o que chamamos bem humoradamente de público interno: os pais da pequena, Mary e eu – e para ela, que em algum lugar do futuro vai ler, se quiser… Algumas vezes acho que ficou legal, que merece ir para o 50 Anos de Textos. Que são coisas que não revelam intimidades, e que, de alguma forma, podem ser talvez de uma leitura agradável para os amigos, ou até para eventuais leitores desconhecidos.

Antes de publicar qualquer uma das anotações, peço para autorização para o Carlos e a Fernanda. Peço que leiam, vejam se não estou invadindo a privacidade deles. Não que eu seja muito cuidadoso – mas minha filha é, e se há algo que respeito mais que tudo na vida é minha filha.

Eles me deram logo a autorização para publicar essa anotação aí, que é da quarta-feira da semana passada, 22/4. Mas me enrolei, e só agora estou publicando, no dia 1º de Maio. Não que isso faça qualquer diferença.

A de ontem, 30/4, foi a telenetada número 23. A primeira foi no dia 22/3.         Temos, portanto, se minha aritmética estiver certa, 23 netadas em exatos 40 dias.

O que dá um dia de brincadeira com Marina e o outro não.

Os números confirmam: o coronavírus fez com que a gente brincasse  mais vezes por semana do que antes, quando todos tínhamos o direito de ir e vir e atravessar a Sumaré daqui pra lá e de lá praqui.

5 Comentários para “Marina, a quarentena e as telas”

  1. Uma delícia ler as reinações informáticas de Narizinho, digo, Marinazinha. O único risco é que a baba que escorre dos lábios dos avós (vide foto) possa danificar o laptop.

  2. Marina está atravessando essa chatíssima quarentena muito bem, graças à sua inteligência e ao bom senso de seus pais e avós. E vejo pelo origami que o uso mais permitido das telas não ‘derreteu’ os primeiros sete anos com muito poucas telas!
    À Marina e seus amigos deixo beijócas virtuais, com muito afeto.

  3. Servaz, imagine eu que tenho 6 netos, de idades diferentes e que tomavam café da manhã todos os sábados com a gente? As minhas telenetadas são agitadíssimas quando acontecem na casa dos q tem irmão. Todos disputam as telas p falar c os avós.
    Foi ótimo ler seu texto ouvir da sua experiência com Marina.
    Confesso que tá difícil este isolamento! Pras crianças então….. beijocas

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