Há 102 anos, a terrível pandemia

Foram muitas, muitas casas de São Paulo com um pequeno pedaço de papel colado à porta. O sinistro papelucho era marcado pela tarja preta do luto. Antes que as mortes chegassem a centenas – a milhares -, ainda havia alguma esperança. A gripe espanhola matava milhões, na Europa e nos Estados Unidos, e em todo o mundo.

No Brasil, havia chegado à capital, o Rio de Janeiro. Agora, avançava sobre São Paulo. Nos primeiros momentos, meados de outubro de 1918, a doença mostrou-se benigna. Os paulistanos caíam doentes, mas não havia mortes. Talvez…

Não há talvez para algo tão devastador. Em dezembro, quando a epidemia cedeu, contavam-se 5.331 mortos em São Paulo (entre 116.777 doentes) e 12.388 no Rio. Eram números oficiais. Como aconteceu no mundo todo, números imprecisos. “Chegou um momento em que as pessoas nem contavam as vítimas, tinha muita gente morrendo”, diz uma estudiosa dos fatos, Liane Maria Bertucci.

Em todo o Brasil, foram cerca de 35 mil mortes. No mundo, sucumbiram 21 milhões de pessoas. Era o dobro dos mortos pelos quais a Europa havia chorado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), encerrada meses antes. Incluindo-se as vítimas não registradas, o total poderia, segundo interpretações, chegar a 40 milhões.

Os primeiros casos surgiram em campos de treinamento militar dos Estados Unidos. Lá havia aves, que contaminaram cervos, que por sua vez contaminaram os soldados. A combinação de vírus animal com humano resultou numa gripe extremamente virulenta, com uma característica cruel: gripes não matam, mas aquela matava.

Nos séculos anteriores, os ingleses haviam chamado uma gripe de Espanhola. Esta de agora nada tinha a ver com a Espanha, mas o nome ficou. Ela era também chamada de Influenza, que é o nome do vírus da gripe. Esse vírus sofre mutações e pode resultar em gripes mais, ou menos, fortes.

O vírus da Espanhola causava gripe forte, com queda da pressão arterial e batimentos cardíacos irregulares. Os mortos ficavam com o corpo arroxeado. Em questão de meses, a doença transformou-se em uma pandemia: atingiu vários países. No Brasil, contou-se, entre as vítimas, o presidente da República, Rodrigues Alves. Eleito para um segundo mandato, morreu antes de assumir.

Um bonde ambulância

São Paulo tinha 528.295 habitantes. Foram seis semanas (o ciclo normal de uma gripe) de dor e solidariedade. Hospitais provisórios foram instalados em escolas (afinal, as aulas estavam suspensas), no Mosteiro de São Bento e no Cinema Guarany. A Santa Casa de Misericórdia cuidava apenas dos seus doentes, porque nenhum deles estava com a Espanhola. Mas a gripe rompeu o isolamento. Com isso, o hospital abriu novas alas e criou 400 leitos para novos doentes.

A Light and Power Company, responsável pelos bondes elétricos (que oito anos antes haviam substituído os puxados a burro) adaptou um deles como ambulância. Ia buscar doentes em bairros afastados, como Penha, Santana, Ipiranga. Os bondes, como os trens de subúrbio, eram diariamente desinfetados. Isso não impediu que, na primeira semana da epidemia, 78 motorneiros ou cobradores fossem infectados.

A doutora Liane Maria Bertucci estudou profundamente a gripe espanhola e suas consequências para a tese de doutorado que defendeu na Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. A tese resultou no livro Influenza, a Medicina Enferma. Liane descreve São Paulo sob o ataque da Espanhola, que alcançou seu ápice na primeira semana de novembro.

“A epidemia é algo avassalador, a cidade vai parando. As pessoas não saem para trabalhar, por estarem doentes. As que não estão saem, adoecem, voltam para casa e ficam trancadas.”

A cidade mudou seu ritmo, descreve Liane. Os parques, bares, cinemas, lugares que reuniam muita gente, foram fechados. Os que resistiam acabavam também por cerrar as portas. O medo de contágio afastava as pessoas. Os estádios de futebol ficaram vazios: interrompeu-se o Campeonato Paulista (no Rio de Janeiro, chorava-se a morte de dois craques, João Cantuária e Fench).

Assaltos para pegar leite

A escassez de comida assustava. O Estado de S. Paulo de 22 de novembro registra: “Dias houve em que coisas essenciais chegaram a faltar a muitos, como leite, por exemplo. Daí o assalto a carrocinhas distribuidoras, em plena rua.” O jornal fazia apelos à população: “As famílias de cada quarteirão devem interessar-se uma pelas outras, mandando saber diariamente o que necessitam, e socorrer-se mutuamente com alimentos, remédios, auxílios de toda espécie”.

Apesar de tudo, alguns açougues e o Mercado Municipal funcionavam. Tentavam comprar alimentos, carne e cereais de cidades do interior. As encomendas vinham por trem. Mas estes começavam a parar. Os maquinistas, como os passageiros, adoeciam. A situação foi amenizada por postos criados pelo governo, que ofereciam vales para a compra de remédios e comida.

A cidade se mobilizava. “A Cúria Metropolitana foi decisiva na ajuda aos doentes com necessidades materiais”, diz Liane. Atuavam também a Liga Nacionalista, formada por estudantes e professores. Os estudantes de medicina apresentavam-se como voluntários. E também médicos, como Emílio Ribas.

A Cruz Vermelha, com sede em São Paulo, recebia donativos, camas, roupas, alimentos, para ajudar a montar postos de atendimento aos doentes. Os jornais O Estado de S. Paulo e Fanfulla se uniram para receber doações e mantimentos, passados para a Liga Nacionalista distribuir.

O governo, por sua vez, “tentou proteger São Paulo”, diz Liane. O presidente (governador) era Altino Arantes. O prefeito da capital, Washington Luiz. O secretário do Interior recebeu a missão de coordenar as ações de combate à doença e atendimento à população. Isso foi feito “dentro das possibilidades da época e da natureza da epidemia que se apresentava”.

Remédio: gargarejo e cama

Era uma epidemia de gripe, mas os médicos tinham muitas interrogações sobre a doença. Já sabiam que era endêmica (atinge toda uma região) e mundial. Não sabiam se era causada por um bacilo (um tipo de bactéria), mas tinham conhecimento de que era um micróbio, transmitido pelo ar e pelo contato das pessoas. O Serviço Sanitário dava instruções para o povo se proteger. Prescrevia inalações com vaselina mentolada, e gargarejo com sal e ácido cítrico. Tomar quinino, principalmente às refeições. Aos primeiros sintomas o doente devia ir para a cama, permanecer em repouso, e não receber visitas.

Por fora, comerciantes anunciavam produtos salvadores, como água purgativa, e até mesmo, “como medida preventiva”, produtos para exterminar insetos pulgas e ratos. Um numeroso grupo tinha “um santo remédio” para a cura: pinga com limão.

A gripe chegou ao Brasil provavelmente no navio Demerara, que deixara Liverpool, na Inglaterra, seguira para Portugal e acabaria por aportar no Recife. Daí navegou para Salvador e para o Rio. A bordo havia pessoas doentes de um mal que não se sabia definir. Algumas desceram no Rio; outras, provavelmente, nas escalas anteriores.

Em 1977, cientistas americanos encontraram fragmentos do vírus da gripe espanhola em cadáveres sepultados em certo lugarejo do Alasca. Os fragmentos foram recompostos em laboratório e os vírus reativados. Camundongos inoculados com eles morreram em seis dias, com os pulmões contaminados por dez vezes mais vírus do que haviam recebido.

“A gripe espanhola é uma gripe como a que temos todo ano, mas que combinou um vírus animal com um humano, de uma forma explosiva” – diz Liane. “Do jeito como que aconteceu, em tais proporções, talvez não ocorra mais, porque as pessoas estão mais atentas, e isso diminui os riscos. Mas não é impossível acontecer”.

Esta reportagem foi escrita por Valdir Sanches para o Diário do Comércio, em outubro de 2008, quando a eclosão da gripe espanhola fez 90 anos.

 

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