Chilreando!

Hoje acordei decidida a não me deixar aborrecer!

Olhei pela janela, vi um sol escondendo sua timidez atrás das nuvens e pensei: pelo menos está melhor que ontem e anteontem. A chuva destes dois dias não deixou que ele esboçasse sequer um sorriso amarelo.

Fiz meu café e fui para o jardim, como fazem os bichos que deixam a toca quando a chuva para.

Sentei-me e comecei a sorver o café quentinho enquanto os pássaros chilreavam (sorver, chilrear…acho que acordei com veia poética hoje) nas árvores, nos fios elétricos, nos postes, em cima do muro e onde mais eles pudessem estar.

Que coisa boa, pensei. Nada como um breakfast entre plantas e pássaros, esperando pelo sol que já dava sinais de que deixaria a timidez de lado e viria passar o dia com a gente.

Por alguns momentos me deixei levar por esse clima de paz. Mas como essa pandemia não permite que se fique zen por muito tempo, logo comecei a ficar irritada com aquele falatório das maritacas, com o úúúú dos pombos, com a insistência do pássaro de peito amarelo em dizer que bem me viu.

Caramba! Vou sair daqui e pôr a roupa pra lavar, assim não presto atenção nessa profusão de sons que esses bichinhos emitem.

Ainda disposta a passar um dia sem me aborrecer, coloquei a roupa na máquina, lavei a louça do café e, pra não perder o vício, abri o iPad para dar uma geral nos sites de notícia.

Pra quê! O sangue já começa a ferver quando vejo que o assunto mais trágico da semana continuava repercutindo.

Eu não queria mais pensar naquela menina de 10 anos que quase virou mãe por causa da ignorância humana. Eu não queria mais pensar naqueles trogloditas que foram pra porta do hospital para tentar impedir o aborto, chamando a menina de assassina. Eu não queria mais pensar que estávamos voltando aos tempos da Inquisição com um grupo de fanáticos se juntando para julgar, condenar e queimar viva uma pessoa em nome de Deus. Isso faz mal à minha saúde mental.

Escorrego o dedo para outras notícias e lá está que o “doutor” Bolsonaro, em aparente intenção de extermínio da população, disse que máscaras não servem pra nada.

Dele ainda, leio sobre o veto ao projeto que transfere recursos da merenda para pais e responsáveis pelas crianças (que comam brioches, pois). Vetou também repasse financeiro para que Estados e Municípios possam promover ensino remoto. (Quer imitar o Trump, então imite em tudo, cara! Lá eles até distribuem iPads para as crianças). Quase em seguida vejo que a União aplicou apenas um terço da verba destinada ao combate à pandemia, e a população aí morrendo por falta de equipamentos e de medicamentos.

Em outra nota fico sabendo que ele, o presidente, propõe um orçamento muito maior ao Ministério da Defesa do que ao da Educação.

Diante disso, pergunto: vocês aí, cambada, não veem televisão, não leem jornais ou revistas e por isso não sabem que milhões de crianças não têm acesso aos estudos? E que muitas que moram nos cafundós precisam andar quilômetros a pé ou no lombo de um burro pra chegar a uma escola? Nunca ouviram falar que professores, sensibilizados, improvisam “salas” de aula a céu aberto debaixo de árvores?

Não, não devem ter ouvido essas histórias, pois seria muita calhordice tirar a verba que melhoraria a vida dessas crianças para aplicar na construção de submarinos.

Oi? Foi isso mesmo que li? Que Bolsonaro quer mandar mais grana pra Marinha para que ela possa construir submarinos? Com que finalidade? Vamos entrar em guerra com a Rússia ou com a China? Ou seria só para recreação? Deve ser divertido ficar no fundo do mar com os peixes e, de vez em quando, botar o “nariz” pra fora só pra ver se o mundo ainda não acabou.

Tem dó, gente! Nos poupem! Não brinquem assim com a nossa inteligência!

E com essas e mais outras, lá se foi a idéia de passar um dia sem aborrecimentos. Mas vou tentar de novo e voltar para o jardim.

Agora com toda a paciência do mundo para os chilreados, arrulhos, gorjeios, trinados, piados… Sou toda ouvidos, passarada!

Esta crônica foi originalmente publicada em O Boletim, em 21/8/2020. 

2 Comentários para “Chilreando!”

  1. Simplesmente brilhante o texto de dona Vera. Qualidade literária nas amenidades, espirituosa quando desce (fazer o quê?) à latrina, e o fechinho delicioso com a passarada. Amiga, tente novamente , fique apenas na paz dos pássaros e da natureza, neste domingo.
    PS – Duvido.

  2. Caríssimo, obrigada pela leitura.
    Não tá fácil, mas vou tentar ficar mais no jardim e adotar como lema a música Vela no Breu do Paulinho da Viola.
    …dizem lá no morro que fala com passarinhos.
    Saudades!

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