A ameaça é ele mesmo

O vice-presidente Hamilton Mourão acertou na mosca: “Os mares não estão tranquilos porque vídeos são divulgados, redes sociais se incandescem, as pessoas, muitas vezes, não raciocinam sobre aquilo que estão escrevendo e estão discutindo, emoções são colocadas à flor da pele, e parece que nós vivemos num eterno turbilhão. E esse eterno turbilhão tem de ser superado.”  Mas o reconhecimento das tormentas cotidianas e a pregação conciliatória feita na sexta-feira para os empresários catarinenses deveriam ser endereçados ao seu chefe.

Os “vídeos divulgados” partiram do celular do presidente da República, que parece estar à beira de um ataque de nervos e não raciocinar sobre o que escreve. Portanto, as chances de ele colaborar para superar esse “eterno turbilhão” são mínimas. É ele quem os inicia e os insufla para, em seguida, se dizer vítima dos turbilhões que cria.

Ainda assim, o comportamento de Bolsonaro nada tem de irracional. Segue um script, não raro semelhante ao adotado pelo ex Lula, com a diferença de usar uma linguagem ainda mais tosca e agressiva.

Não inova nem na escolha dos seus inimigos mortais. Como o petista, elege os mesmos: a imprensa e os políticos. Cabe lembrar como o PT tratava jornalistas não chapas-brancas, tidos como militantes do PIG (Partido da Imprensa Golpista), porco, em inglês. Ou ainda o desacato de Lula ao Congresso de “300 picaretas”, transformados agora em chantagistas na boca do general Augusto Heleno, cujo “foda-se” virou palavra de ordem para a manifestação pró-Bolsonaro prevista para o dia 15.

A necessidade de convocar ato de apoio a Bolsonaro é intrigante. Mais ainda o fato de o presidente se envolver pessoalmente nisso. Sua atuação no WhatsApp teria se limitado, segundo disse, ao repasse dos vídeos para um grupo restrito de amigos, sob o argumento de “que o Brasil é nosso e não desses políticos de sempre”.

Mas a participação de seu governo é explicita. A atriz e futura secretária de Cultura divulgou o mesmo conteúdo no Twitter, depois apagou. Mais: segundo o jornalista Lauro Jardim, o coordenador-geral de Publicidade e Propaganda da Embratur, Silvio Santos Nascimento, é o locutor de uma das peças. Um novo turbilhão ilegal e imoral.

A pergunta óbvia é por que raios um presidente eleito por 57,7 milhões de votantes há pouco mais de um ano e com quase três anos pela frente precisa implorar apoio nas ruas? Quais fantasmas o perseguem a ponto de ele, sem ser provocado, afirmar que não vai renunciar?

Não cola a balela repetida pelo rebanho bolsonarista de que o presidente é acossado pelo Congresso. Muito menos os ridículos argumentos de barrar a “esquerda corrupta e sanguinária”, que, de acordo com o fatídico e repulsivo vídeo, está sendo enfrentada por Bolsonaro.

Ao contrário. É da Câmara e do Senado que têm vindo os principais movimentos de racionalidade frente aos turbilhões diários que Bolsonaro inventa.

Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tentam acalmar ânimos, mesmo cientes de que Bolsonaro joga para imputar ônus ao Parlamento e se lambuzar com os bônus. Foi assim com a reforma da Previdência. Será assim com as demais.

Já a esquerda, ou o pouco que resta dela, age de forma tímida e atrapalhada. Agora mesmo, PT e cia. decidiram convocar uma contra-manifestação, fracasso anunciado, para o dia 18. Ou seja, embora os fiéis e o próprio Bolsonaro queiram fazer crer que a esquerda é o demônio encarnado, ela oferece risco zero ao presidente.

Então, por que Bolsonaro precisa das ruas de março?

Entende-se que já no radar do impeachment e no auge de sua impopularidade, quando amargava 9% de aprovação, Fernando Collor de Mello tenha se lançado de cabeça na tresloucada (má) ideia de chamar seus apoiadores às ruas. Nada que se pareça com os dias de hoje, quando a única ameaça a Bolsonaro é ele mesmo.

Talvez necessite reavivar permanentemente a figura do “escolhido”, do mito. Protegido pela “unção” ele desvia o foco de temas incômodos como o da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. E esconde sua inabilidade e inapetência para exercer a Presidência da República, instituição que, não raro, ele insulta.

Manifestações oxigenam a democracia. A favor de A ou B, contra o C ou pelo D. Mas perdem legitimidade e ganham ilegalidade quando contrárias às instituições democráticas e patrocinadas pelo Estado. Os governos Lula e Dilma eram useiros e vezeiros em se imiscuir nas ruas. Deveriam ter sido condenados por fazê-lo. Assim como o governo do presidente Bolsonaro. Sua participação, mesmo velada, injeta mais tensão no turbilhão.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 1º/3/2020. 

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