São São Paulo, Mon Amour

Ainda não tinha tomado nem o primeiro chope quando me ocorreu que faz mais de 40 anos que moro neste bairro. A não mais de quatro quadras daquele lugar exato em que fica o bar, na esquina de João Ramalho com Sumaré. Peguei um guardanapo para fazer a conta: 2019 menos 1977, 42! 

Cacete!

Quase 10 anos no morro de um lado do vale da Sumaré, o lado a Leste. Mais de 30 anos no morro do outro lado, o lado a Oeste.

Quando ainda morava no outro morro, na Ministro Godoy, me apaixonei pela canção de Sergio Endrigo que diz que “siamo zingari e vagabondi / sempre in giro di città in città”. A canção é maravilhosa, e continuo gostando demais de ouvi-la – mas se há uma coisa que não sou é cigano – e nunca estou passando de uma cidade para outra.

Sequer de um bairro eu passo para outro.

Me lembro que, quando me mudei para o lado de cá da Sumaré, escrevi que daqui só sairia para a Vila Alpina. Quem conhece São Paulo entende perfeitamente.

***

Cheguei a São Paulo no início de 1968, aos 18 anos de idade. Num período de menos de 10 anos, entre 1968 e 1977, morei em … Deixa ver… 7 endereços diferentes. De 1977 para cá, ao longo de 42 anos, foram 2 endereços só, no mesmo bairro, um a sete quadras do outro.

Definitivamente, não sou cigano nem vagabundo, nem estou sempre viajando de uma cidade para outra.

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É engraçado pensar que as coisas mudam, mesmo que você não mude, fique sempre no mesmo lugar.

Da esquina da Sumaré com João Ramalho para a Ministro Godoy, o primeiro lugar de Perdizes em que morei, são três quadras, apenas – mas três quadras de uma subida feladaputa. E aconteceu dezenas e dezenas e muitas dezenas de vezes de a gente parar num boteco ali perto daquela esquina, na madrugada, depois do fechamento do jornal, para mais uma cachaça, mais uma cerveja, e eu não ter coragem de enfrentar a pé as três quadras de subida, e acabar ficando para mais uma e mais uma até que o primeiro colega dissesse que ia embora, e então eu pegar carona com ele.

Não foi uma vez, não foram 10 vezes – foram dezenas e mais dezenas e mais dezenas. Eu doido pra chegar em casa, mas incapaz de dizer tchau, amigos, vou embora – e aí ficava mais um tempão, até o primeiro colega motorizado sair e eu pedir a carona.

As ladeiras de Perdizes que me mantinham horas a mais no bar, eu doido de vontade de chegar em casa, quando tinha por volta de 30 anos, agora, beirando os 70, subo na maior.

A vida é uma coisa cheia de ironia.

Por uma dessas coincidências malucas de que é feita a vida, dessas coincidências que são a maneira que Deus encontrou para se manter no anonimato, minha filha mora três quadras acima da esquina de Sumaré com João Ramalho. No prédio ao lado daquele em que eu morei e onde ela passava os fins de semana. E então o morro que eu não subia aos 30 anos subo lépido e fagueiro agora, beirando os 70, para ver minha neta e minha filha.

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Faz muito tempo que penso nessa coisa de nunca ter tido coragem de subir as três quadras da João Ramalho quando era jovem, e hoje subir tudo quanto é ladeira do bairro. Coisa de louco.

Nunca tinha, no entanto, escrito sobre isso, registrado esse fenômeno maluco. Apesar de ser uma coisa muito pessoal, e de não ter interesse algum para as outras pessoas, pensei em botar isto aqui no 50 Anos de Textos.

Não sei muito bem por quê – mas tenho uma suspeita. Acho que este texto aqui, meio sem eira nem beira, na verdade pretendia ser um hino, uma ode, um agradecimento a São Paulo.

Nunca consegui fazer um texto de agradecimento a São Paulo que fosse bom.

Acho que foi no ano em que cheguei aqui que TomZé lançou “São São Paulo Mon Amour”, aquela maravilha. Foi também em 1968 que Caetano lançou “Baby”, em que dizia que “vivemos na melhor cidade da América do Sul”. Que saiu no mesmo disco de “Mamãe Coragem”, em que Torquato Neto dizia, na voz de Gal: “E vou vivendo assim: felicidade / Na cidade que eu plantei pra mim / E que não tem mais fim / Não tem mais fim / Não tem mais fim”.

Caetano é foda, Caetano sempre disse tudo com perfeição e brilhantismo. E nem é em “Sampa” que ele brilhou mais, e sim naquele verso fantástico, perfeito, que é “São Paulo é como o mundo todo”.

***

Talvez tenha a ver.

Talvez eu não tenha conseguido jamais ter feito um bom texto para São Paulo (e, diacho, tentei muitas vezes – ah, se tentei) porque a sombra das frases de Caetano me assusta, me deixa pequenininho.

São Paulo é como o mundo todo.

E, para continuar na citação de Caetano, no mundo grandes amores perdi, grandes amores ganhei.

É piada interna, inside joke, mas me permito, com a irresponsabilidade garantida pela décima cerveja e a terceira vodca: a verdade é que Suely e Regina olham para nós e brincam que Mary é uma mulher de sorte. Conheceu o cara depois que ele, com o passar dos anos, melhorou – um pouquinho que seja. “São Paulo o tornou melhor”, elas devem se dizer.

Verdade: São Paulo – e minha filha, e minha mulher. E, agora, minha neta. Deliciosamente paulistana da gema, como a mãe e a avó. Me fizeram, me fazem melhor.

5 e 6/2/2019

Um comentário para “São São Paulo, Mon Amour”

  1. Lindo texto!
    Também moro na minha cidade (pequenina) do interior do MS, há mais de 44 anos. Cheguei jovem, recém formado em Direito. Hoje, passado dos 70, quisera eu ter o seu talento para escrever palavras de agradecimento a esta cidade que me acolheu e viu nascer meus filhos.
    Obrigado por nos proporcionar textos gostosos de ler.

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