Português precisa-se!

O atarantado Reino Unido precisa, nesta Primavera de 2019, exactamente do que, na Primavera de 1817, precisou a atarantada aldeia de Almondsbury, ali perto de Bristol e do seu canal. Precisa de um português.

A 3 de Abril de 1817, o sapateiro da aldeia dobrou a esquina vespertina e chocou com uma jovem desconhecida, perdida, semi-vestida – ou, derramando um pingo de moral nesta prosa, semi-despida. Quer ajudá-la, mas não entende uma palavra que saia daquela boca, bem linda, por sinal. Chama a mulher, e só duplica a cacofonia. Uma hora depois, está a aldeia inglesa à volta da jovem de 20 anos, como estaria a aldeia de Fátima, se a levitante Nossa Senhora, em vez de pousar no campestre galho de uma azinheira, tivesse, peripatética, caminhado pelo largo central. Ora, Nossa Senhora falava línguas, a jovem de rotos trajos de Almondsbury é que línguas era o diabo.

Embora não fosse dona daquilo tudo, havia uma família rica, os Worrall. Ele era magistrado, a mulher era americana, a governanta, uma descendente de Safo, a que a invejosa aldeia chamava a criada grega. Chamaram esses poliglotas e uma onda babélica varreu as ruas de Almondsbury. Os Worrall levaram a igual sopa que já leva Theresa May. Zero, bola. E a mesma hermética incompreensão que hoje assola o Parlamento britânico instalou-se naquela aldeia pré-Brexit.

A senhora Worrall apalpa então as mãos da jovem. Eram nódulos, palmas e polpas macias como, hoje, as de Kate e Meghan. Mãos de ninfa. Durante dez dias a aldeia percebeu dessa ninfa o que o nosso sistema de ensino leva os estudantes a compreender de hermenêutica textual. Com uma excepção. Mostraram-lhe imagens e eis que ela grita “ananás”, apontando para uma reprodução do dito cujo. Era, pois, uma jovem exógena e exótica.

E chega o português. Intempestivo, como as línguas de fogo do Espírito Santo a descer sobre os apóstolos, em Almondsbury entra Manuel Ennes, marinheiro e experimentado aventureiro nas alegrias e doçuras de Ocidente e Oriente. Falou com a moça. Entenderam-se geringoncialmente como Deus e os anjos: fra­ses cur­tas, risos rápi­dos, total con­cor­dân­cia ges­tual.

Manuel desfez o mis­té­rio. Como as delicadas mãos atestavam, ela era a princesa Cara­boo, da ilha de Javasu, algu­res no Índico. Tinham-na rap­tado os pér­fi­dos pira­tas da pér­fida Albion. Após tor­men­tosa via­gem, à vista de terra, furtou-se à vigi­lân­cia dos pernas-de-pau, lançou-se ao mar, e nadou até à praia.

Diluída a ignorância inglesa, Manuel partiu. A aldeia viveu meses de glória com a princesa, a primeira vegan de Almondsbury, alimentada a frutas, legumes e chá, e autorizada a banhar-se nua no lago. A fama espalhou-se pelo condado, mesmo pela nação, chegando aos ouvidos de uma estalajadeira, que logo reconheceu a moça que hospedara seis meses e tinha o hábito de falar às filhas numa linguagem inventada. Caraboo era uma inglesinha, Mary Willcocks, nascida em Devonshire, pobre a roçar o indigente, de deslumbrada imaginação.

Almondsbury sucumbiu à vergonha. Os Worrall pagaram a Caraboo a viagem para a América, pondo um oceano a separá-los. Corre a lenda que uma tempestade levou o barco a Santa Helena e que Napoleão ficou encantado com ela. Em Filadélfia, montou um espectáculo como Caraboo, mas de modesto sucesso, como modesta foi, no regresso, a aparição como princesa exótica, em Londres, a um xelim por espectador. Casou e viveu, honestamente, a importar e vender sanguessugas a enfermarias e hospitais, honesto destino que espera, pós Brexit, a pátria de tão imaginativa filha.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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