Patético, despreparado, destilando ódio (2)

Houve quem enxergasse qualidades no discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembléia Geral da ONU. É natural: há quem enxergue o Saci Pererê, o Papai Noel, a Terra plana.

Mas a grande maioria dos artigos e editoriais na imprensa trouxe duras críticas a cada um dos pontos da fala do presidente, assim como analistas não deixaram pedra sobre pedra no que foi dito ao longo de torturantes 30 e tantos minutos por um chefe de Estado que fazia tremendo esforço para enxergar as palavras no teleprompter e conseguir pronunciá-las.

Eu, pessoalmente, confesso que gostaria imensamente de ter escrito, em especial, três das muitas frases de críticas à postura de Jair Bolsonaro na ONU. São absolutas pérolas:

“Bolsonaro declarou que seu governo combate o déficit fiscal. Mas o principal déficit do Brasil no momento talvez esteja entre as orelhas do seu presidente.”

Essa é de Josias de Souza, em seu blog no UOL. E esta abaixo é de Bernardo de Mello Franco, em O Globo:

“O presidente pareceu confundir as Nações Unidas com sua audiência cativa no Facebook.”

A outra é de Míriam Leitão, em O Globo:

”O presidente Bolsonaro fez um discurso perdido no tempo e que foi uma perda de tempo.”

As análises publicadas nos jornais desta quarta-feira, 25/9, comprovam mais uma vez como é fundamental, como é básico, como é necessária como o ar que respiramos a imprensa livre, independente, forte.

“Bolsonaro erra em dobro”, avaliou O Estado de S. Paulo em editorial: “ao investir numa retórica antagonista, ameaça apartar o Brasil da sociedade das nações; e ao tratar de maneira leviana das questões ambientais, com as quais todos os que têm responsabilidade deveriam se preocupar, coloca em risco o futuro do País que governa. Tudo isso em nome de um ideário retrógrado e fantasioso.”

Para Merval Pereira, em O Globo, “Bolsonaro perdeu a oportunidade de levar sua assertividade ao porto seguro da conciliação e do entendimento. Ao contrário, reafirmou os pensamentos mais retrógrados, inclusive sobre valores morais e religiosos num cenário inapropriado, mergulhou de volta na Guerra Fria, mas dispensou o apoio da Europa com críticas veladas ao presidente da França Emannuel Macron e à chanceler da Alemanha Angela Merkel.”

Segundo Guga Chacra, de O Globo, Bolsonaro, nas Nações Unidas, “certamente alcançou o claro objetivo de se transformar em um símbolo desta nova direita soberanista, que, para alguns, é antiga, dos anos 1930. Ao mesmo tempo, será cada vez mais identificado como adversário pelos liberais democratas europeus e americanos e os defensores do meio ambiente e do multilateralismo.”

Sou um incorrigível compilador de bons textos. Aí vão abaixo as íntegras de textos que reduzem o discurso de Jair Bolsonaro a poeira do cocô do cavalo do bandido – e que dignificam a imprensa brasileira. (Sérgio Vaz)

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Bolsonaro na ONU

Editorial, O Estado de S. Paulo

Na semana passada, decerto aconselhado pela ala ajuizada de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que faria um discurso “conciliador” na abertura da Assembleia-Geral da ONU. De fato, tratava-se de uma ótima oportunidade para tentar desfazer os equívocos que ele e seus ministros mais radicais cometeram ao hostilizar diversos países e governos que vêm se mostrando preocupados com os incêndios e a devastação na Amazônia. Poderia, se tivesse dotes de estadista, recolocar o Brasil na comunidade de nações que nutrem genuíno interesse pelo futuro da humanidade, o qual depende diretamente da preservação do meio ambiente.

O que se ouviu, no entanto, foi um ataque feroz contra um inimigo imaginário e a favor da intolerância – que desde sempre alimenta os discursos de Bolsonaro, agora amplificados pela sua condição de presidente da República.

Logo no início do pronunciamento, Bolsonaro tratou de nomear seu grande desafeto, dizendo que o Brasil “ressurge depois de estar à beira do socialismo”. E continuou, para perplexidade geral: “Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.

Repetia dessa forma seu constrangedor discurso de posse, quando disse que sua chegada ao poder estava “libertando” o País do “socialismo” – ignorando o fato óbvio de que seu antecessor, o presidente Michel Temer, nada tinha de socialista, nem tampouco, a rigor, os governos anteriores. Tratava-se, tanto por ocasião da posse como agora na ONU, da reafirmação de um dos muitos slogans da campanha eleitoral de Bolsonaro, tão estridentes quanto desprovidos de significado real.

O Brasil, de fato, estava sob ataque, mas não dos “socialistas”, e sim de quadrilhas de corruptos que desmoralizaram a política e assaltaram as burras da República. Corrupção não depende de socialismo ou de antissocialismo, como o próprio presidente da República deve saber. Ademais, é bom lembrar que a grande corrupção da era lulopetista havia sido quase totalmente desbaratada bem antes de Bolsonaro chegar à Presidência, graças aos esforços da Operação Lava Jato. Ou seja, Bolsonaro tenta se incluir – e em posição de liderança – num processo do qual ele não participou em nenhum momento.

Tais questões não deveriam ter sido levadas à tribuna da ONU, ainda mais envolvidas num discurso mistificador e demagógico. Não havia ambiente para isso. Em alguma medida, lembra o vexame protagonizado em 2014 pela então presidente Dilma Rousseff, quando transformou a ONU em palanque de sua campanha à reeleição – e, numa entrevista coletiva em Nova York, defendeu o “diálogo” com o Estado Islâmico, que na época havia decapitado reféns, para horror do mundo civilizado.

Mas nenhum delegado presente ao discurso de Bolsonaro deve ter se decepcionado, já que certamente eles ouviram o que já esperavam ouvir, isto é, ataques à imprensa internacional, acusações de “colonialismo” e insinuações de que estrangeiros defendem os índios e o meio ambiente como pretexto para cobiçar as riquezas da Amazônia. Ora, cobiça sempre houve e sempre haverá, mas a soberania da Amazônia não está sob ameaça real desde o século 19.

Se Bolsonaro estivesse realmente preocupado em afastar qualquer risco à soberania brasileira sobre a Amazônia, teria adotado um tom conciliador, em busca de harmonia com a comunidade internacional.

Desde o Barão do Rio Branco, o Brasil, ciente de seus limites militares e econômicos, optou pelo diálogo multilateral – e, ao não se alinhar fanaticamente a uma única potência, como faz Bolsonaro em relação aos Estados Unidos de Donald Trump, ganhou o respeito de toda a comunidade internacional.

Bolsonaro, assim, erra em dobro: ao investir numa retórica antagonista, ameaça apartar o Brasil da sociedade das nações; e ao tratar de maneira leviana das questões ambientais, com as quais todos os que têm responsabilidade deveriam se preocupar, coloca em risco o futuro do País que governa. Tudo isso em nome de um ideário retrógrado e fantasioso.

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Bolsonaro confundiu a ONU com o Facebook

Por Bernardo Mello Franco, O Globo

Em sua estreia na ONU, Jair Bolsonaro fez um discurso deslocado no tempo e no espaço. O presidente investiu na retórica anticomunista, como se o mundo ainda estivesse dividido pela Guerra Fria. Diante de cerca de 150 chefes de Estado, escolheu falar para sua base de extrema direita no Brasil.

Bolsonaro se apresentou como um típico autocrata. Atacou a imprensa, a ciência e as universidades. Adotou um tom conspiratório contra ambientalistas e líderes indígenas que se opõem à destruição da Amazônia.

O presidente pareceu confundir as Nações Unidas com sua audiência cativa no Facebook. Mentiu à vontade sobre as queimadas, a ditadura militar e o programa Mais Médicos. Depois de exaltar o regime autoritário, disse defender a liberdade e a democracia.

Em algumas passagens, Bolsonaro ecoou as falas delirantes do chanceler Ernesto Araújo. “A ideologia invadiu a própria alma humana, para dela expulsar Deus e a dignidade com que ele nos revestiu”, disse. O olavismo, quem diria, chegou à tribuna da ONU.

Foi um discurso agressivo, como temiam diplomatas assustados com o Itamaraty da “nova era”. Em vez de moderar o tom, o presidente radicalizou na pregação ideológica e reforçou as críticas a países europeus. Só guardou elogios para os EUA. Mesmo assim, não conseguiu o sonhado jantar a dois com Donald Trump.

Candidato declarado à reeleição, Bolsonaro dedicou boa parte do tempo a animar sua tropa. Elogiou militares, afagou policiais e fez uma deferência ao ministro Sergio Moro, num momento em que a militância lavajatista começa a se distanciar do governo.

Ele também acenou aos evangélicos, que apresentou como vítimas de perseguição religiosa. Sobre os ataques a cultos de matriz africana, cada vez mais frequentes, não deu nenhuma palavra.

 

Depois de falsear números sobre o território ianomâmi, o presidente criticou o cacique Raoni, líder indígena mais conhecido do país. Aos 89 anos, o caiapó acaba de ser lançado candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Ao atacá-lo pelas costas, Bolsonaro deu um impulso inesperado à campanha.

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Perdido no tempo e tempo perdido

Por Míriam Leitão, O Globo

O presidente Bolsonaro fez um discurso perdido no tempo e que foi uma perda de tempo. Um discurso na ONU é um momento precioso. Diante de uma plateia global, o que o governante deve se perguntar é como defender os interesses do país e nunca como fazer um acerto de contas individual. Mandar recados para o público interno é natural, mas não faz sentido falar apenas para um gueto ideológico. O agronegócio moderno, que cresceu com os investimentos em ciência e tecnologia, por exemplo, precisava de uma ajuda no esforço para evitar o fechamento dos mercados.

Bolsonaro falou que fechou acordos comerciais. E este é realmente um bom ponto do seu governo, ter concluído as negociações que estavam em andamento. Mas os acordos ainda não são realidade. Precisam ser confirmados pelos parlamentos dos seus países, tanto na União Europeia quanto na EFTA, que reúne Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. Diante da crise provocada pelos incêndios na Amazônia, assunto que teve tanta exposição negativa, essa seria uma ótima oportunidade de mostrar empenho em lutar contra o desmatamento. Ele poderia dizer que enviou as Forças Armadas para a região, e que elas de fato encontraram grileiros e madeireiros e que, por isso, houve multa, apreensão e prisão. Foi o que o ministro da Defesa disse ontem, por exemplo, no balanço de um mês da operação na Amazônia.

Isso ajudaria mais do que chamar de “mentirosos” a imprensa, as ONGs, e atacar um velho líder indígena como Raoni. A ideia de que o governo está estimulando o desmatamento e que apoia invasões de terras indígenas poderá levar à não aprovação do acordo pelos parlamentos europeus. Volta-se à estaca zero. Mas mais do que isso, compradores de quaisquer produtos brasileiros, investidores dos grandes fundos institucionais, bancos internacionais, todos podem ter negócios com o Brasil afetados por pressão dos consumidores, dos investidores e da opinião pública. Como grande exportador de produtos agrícolas, não é do interesse do Brasil enfrentar barreiras a esse comércio. Portanto, era o momento de fazer uma inflexão pragmática no discurso.

Todo o longo tempo que Bolsonaro dedicou a travar a batalha contra o “socialismo” foi perdido. Primeiro, porque essa é uma briga de outra era, da Guerra Fria. Segundo, porque essa escolha de adversários é totalmente sem sentido. Cuba é apenas uma pequena ilha, e nós, um país continental. O acordo Mais Médicos já foi desfeito. A Venezuela é um país em escombros. E qual a vantagem de levar à ONU o que houve na América Latina nos anos 1960? E terceiro, e mais importante, hoje partidos socialistas podem entrar e sair do poder, como aconteceu no Chile, por exemplo. Em qualquer país democrático há alternância no poder. Bolsonaro se referiu a um fato inexistente: “um Brasil que ressurge depois de estar à beira do socialismo.” Ele se esqueceu que sucedeu ao presidente Michel Temer?

O Brasil é realmente um país rico em biodiversidade, como ele disse. Mas o temor é que seu governo esteja ameaçando essa biodiversidade. As medidas tomadas no passado por governos que ele tanto critica — ele costuma misturar as administrações Fernando Henrique com Lula e Dilma — construíram os marcos regulatórios que tiveram sucesso na redução do desmatamento e criaram as áreas de proteção.

Era hora de construir pontes, mesmo reafirmando seus princípios. A diplomacia tem a oferecer aos governantes uma lista enorme de fórmulas para se dizer a verdade sem criar atritos toscos. Afirmar que o colonialismo não pode voltar à ONU, para criticar a França, é uma demonstração de falta de autoestima, como se o Brasil estivesse sob essa ameaça ainda hoje sendo uma nação da dimensão e da força que é.

Toda a parte indígena foi equivocada. É até difícil listar os erros. Falar que tem ouro, diamante, terras raras, urânio e, claro, nióbio em terras indígenas parece convite a garimpeiros. Falar que os territórios são enormes e os índios, poucos, reforça os temores de invasão das terras. Falar que “Raoni não tem mais o monopólio” diante da enorme diversidade de povos e lideranças indígenas que o Brasil sempre teve é desconcertante.

Bolsonaro estava ali como presidente dos brasileiros para representar um país, e não como um candidato às vésperas das eleições duelando com supostos adversários. O mundo não dá ouvidos a brigas paroquiais. (Com Álvaro Gribel.)

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Capitão atentou contra o interesse nacional na ONU

Por Josias de Sousa, UOL

Jair Bolsonaro conseguiu uma façanha internacional. Com seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente correspondeu a 100% das expectativas de quem não esperava que ele dissesse nada de proveitoso para o Brasil.

Revelou-se um nanico diplomático. Seu pronunciamento foi um atentado contra o interesse nacional.

Incapaz de elevar a própria estatura, Bolsonaro apequenou a tribuna. Discursou na ONU como se pronunciasse uma das falas que transmite semanalmente aos súditos que o acompanham nas redes sociais —a mesma agressividade, as mesmas obsessões, os mesmos hipotéticos inimigos, o mesmo velho culto à ditadura militar.

Depois de contaminar o meio-ambiente com sua política antiambiental, Bolsonaro conseguiu estragar o ambiente inteiro. Com um discurso contaminado com pesticida ideológico, desperdiçou o que seria a melhor oportunidade para retirar da sua retórica a raiva que atrapalha os acordos internacionais, afugenta investidores estrangeiros e ameaça a pauta de exportações do agronegócio brasileiro.

O presidente desperdiçou a maior parte do seu tempo e da paciência da plateia expondo peças do seu museu particular de novidades: as ditaduras de Cuba e Venezuela, o Foro de São Paulo, a “guerra” travada pelos militares contra os que “tentaram mudar o regime brasileiro”.

Com os olhos grudados num retrovisor que estacionou na era da guerra fria, Bolsonaro esqueceu de falar para o para-brisas, de onde o espreitavam líderes mundiais, chefes de organizações multilaterais e homens de negócios ávidos por uma palavra qualquer que sinalizasse o desejo de injetar racionalidade na prosa.

Sobre a temática ambiental, epicentro da preocupação mundial, Bolsonaro limitou-se a reiterar o lero-lero inverossímil que inclui da negativa do desmatamento ao compromisso com a preservação, dos ataques a ONGs à desqualificação da imprensa, do suposto respeito à cultura indígena à cobiça pelas riquezas que se escondem no subsolo das reservas indígenas.

Dizia-se no Planalto que Bolsonaro não atacaria líderes estrangeiros na ONU. Fez papel de bobo quem acreditou. Sem citar-lhe o nome, o capitão deu botinadas retóricas no francês Emmanoel Macron, acusando-o de usar “mentiras da imprensa internacional” para se portar “de forma desrespeitosa e colonialista, atacando nossa soberania”.

No seu momento de maior lucidez, Bolsonaro enalteceu a agenda liberal do seu governo.”Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. Em apenas oito meses, concluímos os dois maiores acordos comerciais da história do país, aqueles firmados entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e a Área Europeia de Livre Comércio, o EFTA. Pretendemos seguir adiante com vários outros acordos nos próximos meses.”

O nanismo diplomático de Bolsonaro impediu que enxergasse o essencial: sem retirar a raiva de sua retórica, coloca em risco conquistas que não se devem apenas ao seu governo. Ganharam impulso sob Michel Temer. E não avançaram porque foram travados pela corrupção endêmica. O extremismo ideológico é outro tipo de pesticida, mas tem o mesmo efeito devastador. Bolsonaro declarou que seu governo combate o déficit fiscal.

Mas o principal déficit do Brasil no momento talvez esteja entre as orelhas do seu presidente.

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Radicalismo que isola

Por Merval Pereira, O Globo

O discurso do presidente Bolsonaro na abertura da Assembléia-Geral da ONU foi surpreendente não pelo que falou, pois não há novidade no seu discurso, nada que não seja conhecido por todos, aqui e no exterior. O que surpreendeu é que se esperava que o discurso fosse pacificador e conciliador, quando foi agressivo na sua maior parte, e defendeu posições anacrônicas na política externa.

Quem ainda tinha esperança de ver o presidente brasileiro associando-se a posições progressistas das democracias ocidentais frustrou-se, mesmo porque o presidente e seus assessores, oficiais e informais, como o guru Olavo de Carvalho, consideram que o termo “progressista” identifica socialistas e comunistas, não governos que se alinham aos conceitos e valores do mundo atual globalizado, mas não globalista, como gostam de criticar.

Nessa visão extemporânea do mundo, o governo brasileiro vê na discussão sobre os interesses globais, como o meio-ambiente, uma tentativa “de apagar nacionalidades e soberanias”. Como exortou Bolsonaro no final de seu discurso, (…) “Esta não é a Organização do Interesse Global. É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer”.

Não foi à toa que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimentou Bolsonaro pelo discurso, embora não tenha encontrado tempo na agenda para um jantar, ou ao menos um encontro privado, como era esperado pela comitiva brasileira.

Pelos assessores que fizeram o discurso, o tom não poderia ser outro: General Heleno, ministro Ernesto Araujo, Eduardo Bolsonaro e assessor internacional Filipe Martins. Foi uma defesa das posições que assume desde a campanha eleitoral, e usou a tribuna da ONU como um palanque para seu público interno.

Bolsonaro erra quando diz que representa o pensamento da população brasileira. Ele representa o Brasil, pois foi eleito presidente, mas muito do que diz não tem a concordância da maioria. Foi firme e não se intimidou diante da platéia e da possibilidade de protestos – apenas a representação de Cuba se retirou.

O que pode ser visto como uma qualidade, coragem de reafirmar suas posições mesmo num ambiente potencialmente hostil, não significa que persistir no erro deixa de ser um defeito.

Só significa que está mais à vontade no cargo, pois quando foi ao Fórum Econômico Mundial de Davos, logo depois de tomar posse, perdeu a chance de marcar posição lendo um discurso de 8 minutos, quando tinha 45 minutos à sua disposição.

Mas assumiu naquela ocasião compromissos importantes, para incentivar os investidores estrangeiros. Falou em reformas, em abertura da economia, simplificação da burocracia para melhorar ambiente de negócios, diminuição da carga tributária, abertura para o mundo e ainda se comprometeu com preservação do meio ambiente. Coerente com o que está fazendo, com exceção do meio-ambiente.

Ontem na ONU, se preocupou também em agradar os investidores, mas abriu mão de potenciais aliados, contentando-se com o apoio que imagina ter do governo Trump. O problema é que Bolsonaro assume as suas verdades como se refletissem fatos, e esses muitas vezes o desmentem.

Foi um discurso radical, mas sem perder a linha, uma retórica agressiva, mas sem ser perder a compostura do cargo. O presidente mostrou que tem posição e sabe o que quer. Nem sempre, no entanto, o que ele quer representa o melhor para os interesses do Estado brasileiro, mas apenas ideias pessoais, que podem ser prejudiciais.

Ontem, Bolsonaro perdeu a oportunidade de levar sua assertividade ao porto seguro da conciliação e do entendimento. Ao contrário, reafirmou os pensamentos mais retrógrados, inclusive sobre valores morais e religiosos num cenário inapropriado, mergulhou de volta na Guerra Fria, mas dispensou o apoio da Europa com críticas veladas ao presidente da França Emannuel Macron e à chanceler da Alemanha Angela Merkel.

Reafirmar a soberania nacional sobre a Amazônia com ataques a países que deveríamos querer como aliados pode alegrar seu público interno e uma ala mais radical das Forças Armadas, mas não resolve a situação. Só ficamos mais isolados num mundo necessariamente conectado.

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Na ONU, Bolsonaro vira líder de movimento contra o multilateralismo

Por Guga Chacra, O Globo

No palco do plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu se tornar o grande porta-voz do movimento “soberanista”, como se autodenomina esta nova vertente da direita internacional. Seriam os patriotas contra os globalistas, como disse um sonolento Donald Trump minutos após o brasileiro.

Questionam as mudanças climáticas ao adotarem uma postura anti-ciência. Pouco se preocupam com os direitos humanos e de minorias. Atacam a mídia. Condenam as ditaduras de Cuba, Venezuela e Irã, mas ignoram as atrocidades da Arábia Saudita, que tem apartheid contra as mulheres e xiitas, proíbe o judaísmo e cristianismo, esquarteja jornalistas, bombardeia o Iêmen e apoia jihadistas. Afirmam defender o Ocidente, mas se opõem às nações europeias ocidentais, como a França e a Alemanha.

Seus reais adversários não estão em Havana, Teerã e Caracas. São, na realidade, os liberais democratas ocidentais como Macron, Trudeau e Obama. Basicamente, o movimento se posiciona contra o novo Ocidente e celebra um imaginário ou ultrapassado.

Os soberanistas repudiam a agenda multilateralista destes líderes europeus e dos democratas americanos. Buscam associar este liberalismo político ao comunismo cubano e ao regime cleptocrático da Venezuela quando não há nada em comum entre o presidente francês e o ditador venezuelano. Também afirmam que a mídia e mesmo alguns empresários e banqueiros integram esta “conspiração esquerdista”.

O objetivo deste movimento, muitas vezes atribuído ao charlatão Steve Bannon, com quem Eduardo Bolsonaro jantou mais uma vez em Nova York, é redesenhar o Ocidente com um viés mais direitista. Não da direita conservadora, mas desta nova direita populista e até mesmo extremista como vemos na Hungria.

Este novo movimento da direita populista segue forte com Modi na Índia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, Sissi no Egito e o Partido Lei e Justiça na Polônia. Sofreu reveses na Itália, com a fracassada articulação de Salvini para derrubar o governo e convocar eleições, e em Israel, onde Netanyahu corre o risco de não apenas perder o cargo para Benny Gantz como também de ser preso por corrupção.

Bolsonaro, porém, segue firme no poder no Brasil, apesar da queda de popularidade. Mais importante, o presidente brasileiro seria o mais genuíno defensor deste novo “movimento” de direita. Um verdadeiro purista. Acredita no que fala, diferentemente de alguns outros líderes de seu grupo e mesmo de membros de seu governo. Nas Nações Unidas, certamente alcançou o claro objetivo de se transformar em um símbolo desta nova direita soberanista, que, para alguns, é antiga, dos anos 1930. Ao mesmo tempo, será cada vez mais identificado como adversário pelos liberais democratas europeus e americanos e os defensores do meio ambiente e do multilateralismo.

De acordo com Trump, os “patriotas”, ou soberanistas, vencerão. O grande embate será nas eleições americanas do ano que vem. Caso o presidente americano conquiste a reeleição, a chance de reestruturação do Ocidente ganhará força e Bolsonaro será impulsionado. Se perder, o presidente brasileiro ficará ainda mais isolado, especialmente no Ocidente. Depois de Salvini e possivelmente Macri e Netanyahu, sobrará apenas ele.

25/9/2019

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