Farda, tiro e queda

Caiu um grão de pimenta na minha vida. E dois de mostarda, já agora. Naquele tempo tinha dezanove anos e transitei, mais com um suspiro do que com um estrondo, de acólito a guarda vermelho, ou seja, do catolicismo progressista para o maoismo.

Mas há coisas de que mesmo o meu volúvel espírito revolucionário nunca abdicaria. Era maoista e continuava a sonhar que um dia seria espião. E agora, para alegria dos meus amigos comunistas ortodoxos, aos quais então chamava sociais-fascistas, e que assim confirmarão as piores suspeitas do conluio dos Mao-Mao com a suja água do capitalismo, confesso que, mesmo nesses anos de punhinho no ar, a ser espião, queria ser espião da CIA, jamais do execrável KGB.

Mata Hari nunca quis ser espia. Tudo nos separa, aliás. Era sensual e eu não sou, executava uma dança do ventre que deixava plateias em brasa, ia deixando cair véus até ficar quase nua, só com aquele sutiã de prata resguardando a única coisa que tinha parecida comigo, o peito liso. Mata Hari fora criada num erotíssimo templo de Shiva, era javanesa de tão morena, um metro e setenta e cinco de mulher, o que era de alto lá com ela para as duas primeiras décadas do século XX.

Essa era a lenda e era quase tudo mentira, como convém a um espião, seja James Bond, seja Mata Hari. Nasceu holandesa, de sua graça Margaretha Zellee, casou com um militar seu concidadão, que a levou para o longínquo Oriente, para a ilha de Java. Teve dois filhos, mas o casamento varreu-a para debaixo do tapete. O militar era um bêbado, batia-lhe, e tinha pública casa posta a uma amante javanesa, cumprindo os preceitos, estatuto e honra de qualquer oficial holandês no ultramar.

Um misterioso envenenamento ia-lhe levando os dois filhos. Sobreviveu a menina e Margaretha, para grandes tragédias, grandes revoluções, enterrou o menino morto, divorciou-se, matou a sua vida anterior e reincarnou em Mata Hari, no umbigo do mundo, que era Paris. A primeira sessão de dança e desnudamento de Mata Hari, num salão do museu Guimet, deixou o ano de 1905 em estado de comoção e levante. As noites de ovação e glória não têm, como é sabido, história. Deixemos, por isso, a sua nua caminhada triunfal pelos grandes palcos da Europa e passemos à desgraça, que a guerra de 1914 embalou.

O que deliciosamente perdia Mata Hari era uma boa farda. Eis o que me faz ter pena de não ter eu seguido a carreira militar. E tenho de ser honesto com os leitores: a Mata Hari não só lhe era indiferente a patente, desde que de capitão para cima, como o ramo das forças armadas ou até a nacionalidade do oficial que se lhe apresentasse em sentido. Alemães, franceses e russos perfazem 90% das suas expansões amorosas. Abertas as portas da guerra de 14-18, a cama militar dela encheu-se de perigos. Os alemães, primeiro, os franceses depois, convencem-na a colher e passar informações de travesseiro.

O ménage à trois é, praticamente, a língua franca da espionagem, digo eu que não sei do que estou a falar. O arranjo de Mata Hari com alemães e franceses era pouco menos do que tácito. Mas um canalha, adido militar alemão em Espanha, o major Kalle, bufou-a.

A França vinha de perdas brutais e a espia foi condenada à morte. Veio um tenente buscá-la de madrugada. Parece que disse: “A mania que os franceses têm de fazer tudo pela alvorada”. Recusou a venda nos olhos, os braços amarrados. Fiel ao seu amor às fardas, soprou um beijo elegante ao pelotão de fuzilamento. Dispararam e caiu com a mesma leve graça com que fazia a esparregata na sua dança do ventre.

Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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