Amor à primeira vista

Não lembraria ao diabo começar uma crónica sobre um cientista, seja o nosso solar Carlos Fiolhais ou o admirável Sobrinho Simões, associando-lhes o termo “ass”, que é, em português, a forma de reduzir um rabo a duas letras.

Pelo contrário, ao falar-se do biólogo evolucionista Robert Trivers, é crime de lesa retórica não invocar aquele apertado “ass”. Trivers é um “bad ass”, mau cu, pelo seu intratável feitio, e quis ser um “black ass”, cu preto, episódio a que vou ali e já volto.

Espreitemos primeiro os revirados olhos do amor à primeira vista, fidelidade e amantes, os filhos que fazemos. Tudo deliciosas e dinossáuricas actividades que entretínhamos antes de Trivers existir. Ele estudou-as e passámos a olhá-las como olhamos para António Costa quando lemos o que Vasco Pulido Valente escreve sobre ele.

Trivers mostrou, nuínhos, os devaneios de sedução e enlace revelando que são o resultado da radical diferença biológica que os óvulos e os espermatozóides causam no comportamento de mulheres e homens. Sobreviver e reproduzir, a culpa é dos genes.

Os genes de Trivers baralharam-se na adolescência. Aos 13 anos, livro na mão, aprendeu cálculo diferencial e integral. Sozinho. E não pensem que era um rato de biblioteca. Moldou os punhos no pugilismo e em artes marciais. Foi para matemática, em Harvard, e chateou-se de morte. Matriculou-se e rifou física, direito e psicologia. Aqui, deu-lhe uma coisinha má ao tropeçar na explicação do desenvolvimento humano em três estádios, anal, oral e edipiano, que Freud, jura Trivers, terá arrancado das brumas em que mergulhou a sua mente de tanto inalar planícies de coca.

Confuso, Trivers deixou de dormir e apanhou uma depressão de caixão à cova. Levaram-no às urgências. À pergunta, “quem és?”, disse ser “um recém-nascido”, o que logo corrigiu para “uma mulher grávida”. Descobriu que era bipolar. Para relaxar foi fazer livros numa editora infantil. O primeiro, de biologia. Trivers era incapaz de distinguir um hipopótamo de um rinoceronte, mas o trabalho de campo com um cientista, assobiar aos pássaros, observar-lhes os rituais de acasalamento, foi a sua epifania: a biologia era o destino. Chegou ao Nobel.

Os genes deste branquelas e filho de diplomata têm romântica inclinação para a negritude. Fez amizade com Huey Newton, líder dos Black Panthers, a que deu aulas na prisão. Foi membro do movimento, lamentando não ter ele mesmo um “black ass”. Newton corrigiu-o: “Robert, vistos de perto, todos os cus são pretos.” Mas os genes de Trivers queriam mais e levaram-no para a Jamaica. Contribuiu para a gloriosa mestiçagem do mundo: casou com duas jamaicanas e teve delas cinco filhos e oito netos. Nunca tinha sido tão livre, disse.

O que nos salva é o que nos perde, e a Jamaica ia sendo a sua morte. Teve um prémio de meio milhão com o Nobel. Toda a Jamaica soube. Uma noite, dá com dois putos muita feios no quarto, machete e faca na mão. Trivers trazia uma faca nas calças, puxa-a e espeta-a no pescoço de um dos mânfios. Não o mata, mas afugenta-os.

Outra noite, foi ao clube onde comprava a sua liamba recreativa. Mal entrou, apontaram-lhe duas pistolas à cabeça, já estava um cadáver no chão. Era uma acção de vigilantes contra a droga. Entra um terceiro cliente e na confusão consegue ou deixaram-no fugir, por ser branco. Uma velhota que o viu correr, comentou: “Senhor, até te ver fugir, não sabia que o branco podia voar.”

E é por causa deste pé leve que hoje sabemos porque corremos uns atrás dos outros, homens e mulheres, sem pôr os pés no chão.

 

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