A mulher casada

Nicolas um ano antes do fim

Matou-se. Lançou-se de um terraço, em Antibes. Era órfão, exilado e príncipe russo. Pintor sobretudo. Do terraço fatal via-se o mar, essa oscilante antecipação da eternidade.

O suicida, Nicolas de Staël, tinha só 41 anos. Há dois anos que os americanos tinham desatado a comprar-lhe telas: a fanfarra da glória começava a tocar a seus pés, logo a ele que, entre guerras e em Paris, chupara a miséria e mastigara a fome.

Em 1953, ano em que nasci, ainda eu não sabia o que era uma mulher e muito menos uma mulher casada, Nicolas apaixonou-se pela casadíssima Jeanne Mathieu. Era morena, uma luz boa para cegar poetas e pintores, a mesma luz que fizera Staël viver um ano em Marrocos e descobrir as cores, ponta de lança da sua pintura.

Nicolas não lhe tocara com um dedo e já o invadia uma reaccionaríssima paixão: possessiva, ubíqua, omnipresente. Tal como eu vi o fulgor tropical da transcendência nas praias e mangais do km 36, entre Luanda e a Barra do Kwanza, a imagem de Jeanne foi a limalha incandescente no olho e coração de Nicolas. Queria-a, verbo que passou a conjugar com veemência sussurrante.

Mandado e recomendado pelo amicíssimo poeta René Char, seu gémeo em altura, Staël viera com mulher e filhos, passar férias à quinta onde os Mathieu criavam bichos-da-seda. Os Mathieu, pais de Jeanne, eram família patrícia, com gosto pela cultura. Recebiam Char e Albert Camus, melhor amigo de Urbain Polge, marido de Jeanne. O molho vinagrete de Jeanne salvou Camus do tédio de Sartre e salvou meia literatura.

No fim da estada, Staël alugou uma camioneta e viajou a Itália com mulher e filhos, convidando Jeanne a vir com eles. Ela, com a liberdade patrícia de 1953, aceitou. Viagem de tormento familiar, de amor reprimido, garrote apertado no desejo. Regressam e ele despacha a família para Paris. Quer ficar sozinho para pintar, diz. Quer ficar e fica sozinho com Jeanne. Libertou-se o desejo em todas as assoalhadas, sala, cadeirões, varanda, quarto, talvez cama. Não invento: basta ver como Nicolas desatou a pintar nus. Nu de Pé, Nu Deitado, Nu Deitado Azul, Nu Jeanne, e esse Nu Deitado (Nu) que, em 2011, se leiloou por mais de sete milhões de euros.

fabulosas cores de Nu Deitado (Nu)

Mas Nicolas, príncipe russo, alma dostoievekiana, abomina o pecado. Quer e quer e quer casar com Jeanne. Ela assusta-se e foge para o marido gentil e camusiano. Arde nos pulmões e no estômago de Nicolas um fogo do inferno. Não pode já viver sem a amada. A rejeição do casamento é um punhal que, virasse-se ele de costas, lhe veríamos cravado entre os ombros.

Despreza a glória e os cifrões americanos. Pinta, obsessivo, 254 telas e 300 desenhos. Vive a cada semana uma revolução estética, que deixa os compradores mais estupefactos do que Moisés ao ver a sarça-ardente.

Nicolas não compreende e ainda menos aceita que Jeanne fuja do desejo e do seu amor sinfónico. Está só, abandonou a família e abandonou-o o amigo, um reprovador René Char. Com quem pode Staël falar que o compreenda? Talvez Deus! Queima, então, toda a papelada, menos as cartas que recebeu de Jeanne. Vai entregar-lhas. Jeanne, vestida de medo, manda o marido à porta recebê-las. Nicolas entrega-lhas e diz: “Ganhaste!”

Volta ao apartamento de Antibes e pinta, três dias e três noites, uma tela gigantesca, de 6×3 metros, o Grande Concerto, imponente piano negro à esquerda, contrabaixo dourado à direita, fundo vermelho. O dostoievskiano Nicolas escrevera numa carta: “Preciso desta mulher para me atirar ao abismo!” Acabado o Grande Concerto, subiu ao terraço e mergulhou.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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