Um olho no cavalo, outro em Dean Martin

O tipo era um bêbado sem remissão. Tão reles e submisso que já nem à mão lhe davam a moedinha: atiravam-lha para o escarrador do saloon. Falo de Dude, a quem os mexicanos chamavam Borrachón. E, todavia, esse trapo, que se esfregava pelas ruelas traiçoeiras de Rio Bravo, destila uma elegância física natural. Dentro de Dude está afinal Dean Martin.

Quem não viu Rio Bravo, um western de Howard Hawks, não sabe o que é o amarelo, o vermelho de duas gotas de sangue a tombar num copo de whisky, o negro alegre de uns collants de mulher, capaz de resgatar do negrume os negros de Caravaggio.

Mas, meu kambas, só vê Rio Bravo quem conseguir ter um olho no filme e outro no bêbado Dean Martin. Onde é que ele aprendeu, com que Godard ou Stanislavski, a fazer o que faz? E o que faz é erguer da lama um homem, dar-lhe verticalidade, pôr agilidade em braços mortos, um brilho galante e malicioso onde já só dormia um olhar baço.

Soube há pouco, disse-mo em conversa um livro de Jerry Lewis, que Dean Martin aprendeu tudo na Vila Alice, bairro de Luanda em que nunca viveu. Nessa altura, Lewis e Martin eram os melhores amigos e davam shows na América e em Las Vegas. Eram dois muadiês ricos, uns putos que podiam fazer o que lhes desse na gana. E Dean Martin, como qualquer tipo da Vila Alice, só queria ler livros aos quadradinhos. Reparem, eu não disse banda desenhada, que não quero ofender o meu amigo Dean. Eram os mesmos livros aos quadradinhos que o meu bando lia e toma lá para troca.

Dean Martin tinha até um bocadinho de vergonha e mandava comprar os seus comic books. Jerry, que então o amava, dizia-lhe que devia ir ele escolhê-los e comprá-los. Dean sorria: “Mas não te importas que os mande comprar?”

Consigo ver o sorriso desarmante de Dean Martin, porque nele tudo era desarmante: o andar, a forma de falar, de sacar do coldre o revólver, de deixar assentar o chapéu. Lia livros aos quadradinhos, esticava as pernas e bebia a ociosa e gelada cerveja. Eis a forma simples e preguiçosa de ser homem, a sua felicidade.

Morreu num dia de Natal. Las Vegas, essa ominosa e pirilâmpica florescência de brilho e néon, que tem pavor da escuridão, prestou-lhe tributo. Todas as luzes se apagaram por um minuto, calma escuridão em que Dean fechou a última página do seu livro aos quadradinhos.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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