Tom Hanks na São Silvestre de Luanda

Uma nota prévia. Quem me contou a lenda caluanda que subjaz a esta crónica foi o meu amigo Orlando C. Marques. Contou-a ele muito melhor do que eu a transformei em crónica. Por isso, advirto que o Triste resultado final só a mim me obriga. 

Ah, meu caro Tom Hanks, meu caro Tom Hanks, a verdade é que já não sei se os atletas foram desaguar na Rua do Casuno ou no Beco do Casuno, tão primos e contíguos eram rua e beco. Ruas quimbundas da Cidade Alta, que os

registos guardam desde o século XIX, quando a iluminação de Loanda ainda se fazia a expensas do azeite de jinguba.

O que eu quero dizer é que ao vê-lo correr, feito Forrest Gump, uma multidão de seguidores atrás, sei o que o meu amigo só poderia ter sabido se os seus ancestrais açorianos em vez de irem pescar cachalotes para a América tivessem ido, como o meu pai, apanhar ociosos e retroactivos caranguejos nas praias do Cabo Ledo, a Quissama tão perto.

Agora veja, amigo Tom, Lopo de Moraes era um cabo-verdiano de caprichado cabelo liso e coração tão gentil como o do seu Forrest Gump, mas com uma velocidade de raciocínio de banda larga em fibra óptica, privilégio caluanda do final dos anos 50, inalcançável pelos rapazes das berças da América. A vasta Angola pedia corrida e, se de alguma coisa gostava, Lopo de Moraes gostava de correr.

Luanda tinha então a São Silvestre, disputada por volta da meia-noite, forma desportiva e pagã de meter na gaveta, ano a ano, o tempo. Lopo concorreu. Melhor, arrancou na frente. O calor tropical de Dezembro, uma brisa acidental, que por ali passava, emprestaram às pernas de Lopo a graça alegre da gazela de Catete. A alegria da corrida dele, como a do seu Forrest Gump, era contagiante. Conceituados atletas lusos, outros estrangeiros seguiam, se me permite a rima, as morenas pernas locais de Lopo de Morais. E ele subia, seguindo o percurso, à Cidade Alta. Estava a um passo da Rua do Casuno. Era ali a farra de fim de ano pela qual batia o coração de Lopo. Teria uma, talvez duas damas à espera? Ia dançar-se merengue e semba, rumba e samba?

Pois é, caro Tom Hanks, todo o seu Forrest Gump era pernas, mas este Lopo era sobretudo dado à macia doçura de um sentimento requerente de cálido seio humano. Veja-o, desviou-se do percurso e imbicou para a farra da Rua do Casuno, todos os atletas atrás dele. Desaguaram na dengosa festa para espanto das damas e indignada comoção da organização e do próprio São Silvestre. É lenda, diz você. É a vida, digo-lhe eu, quando à vida calha ser o cinema que Deus nos deu.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com 

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *