Irresponsible news

O jornalista Ancelmo Gois afirmou nesta sexta-feira na sua coluna em O Globo que “a participação do presidente Michel Temer em Davos, na Suíça, passou quase despercebida”.

E sentenciou: “Definitivamente, o interesse pelo Brasil caiu bastante”.

É mau jornalismo. É uma nota irresponsável.

A primeira afirmação – a participação de Temer passou quase despercebida – é um bastante fluida, vaga, imprecisa.

Quase despercebida? O que exatamente seria despercebida, o que seria quase despercebida, o que seria mais ou menos despercebida?

Com que régua se mediu o grau de atenção dado ao discurso de Temer?

Quem disse isso que ele passou quase despercebido? Foi feito uma pesquisa? Uma sondagem? Algum instituto de pesquisa disse isso? Algum analista de agências de risco? Ou foi o feeling de algum repórter? Qual repórter? Que argumentos foram usados para que ele fizesse tal afirmação?

Os experientes repórteres Célia Froufe e Jamil Chade, do Estadão, escreveram, de fato, que Temer foi recebido para seu discurso “com aplausos mornos e em uma sala longe de estar lotada”. “No início de seu discurso, a platéia era só de um terço da capacidade do local. Aos poucos, foi enchendo até chegar praticamente à metade da capacidade.”

O mesmo cálculo foi feito pela igualmente experiente repórter de O Globo, Martha Beck. “O discurso de Temer começou com um terço dos lugares ocupados e terminou com metade dos assentos preenchidos – a organização colocou biombos, a fim de adequar o espaço ao público.”

Os repórteres Célia Froufe, Jamil Chade e Martha Beck estavam lá, e reportaram o que viram: havia cerca de um terço das cadeiras ocupadas quando Temer começou o discurso, cerca de metade delas ocupadas ao final do discurso.

Mas de onde saiu a conclusão de que a participação de Temer “passou quase despercebida”?

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Muito pior ainda, creio, é a segunda afirmação, que começa com um advérbio que pretende dar um ar peremptório, categórico, fim de papo: “Definitivamente, o interesse pelo Brasil caiu bastante.”

Ah, é? De novo: quem foi que disse? Quem foi que mediu? Com que tipo de rágua?

Mais ainda: comparado a quê? Ao Fórum Econômico Mundial de 2017, quando não havia presidente brasileiro lá para discursar? Em relação a 2016, talvez? A 2015? Nesses dois anos também não houve presidente brasileiro em Davos.

Ah, estaria então Ancelmo Gois se referindo a 2014, quando Dilma Rousseff era presidente do Brasil?

Sei. E qual é a base de comparação que permite que se afirme, de forma peremptória, categórica, fim de papo, que o interesse pelo Brasil caiu bastante de 2014 para cá?

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Se Michel Temer tivesse feito seu discurso com um bando de passistas de escola de samba seminuas atrás dele, mais Anitta e Pablo Vittar encenando um lance sensual, não teria atraído fantástica atenção daquele punhado de governantes, ministros, executivos de bancos e de grandes conglomerados industriais e analistas – simplesmente porque o interesse dos líderes da economia mundial está muito mais voltado para as medidas protecionistas de Donald Trump e o que os demais países desenvolvidos podem fazer contra elas.

Temer falou na quarta-feira. O presidente argentino Maurício Macri falou na quinta – e seu discurso estava em boa sintonia com o de Temer. Donald Trump falaria na sexta-feira.

O PIB dos Estados é de US$ 17,9 trilhões. O da União Européia, de US$ 16,2 trilhões. O da China, de US$ 10,9 trilhões. O do Brasil é de US$ 1,7 trilhão.

O discurso de Michel Temer seguramente não deve ter sido um dos top 10 de Davos – e isso é absolutamente natural. Basta olhar novamente para os números do parágrafo acima.

Agora, dizer que a participação de Temer “passou quase despercebida”, sem dar nenhuma informação que comprove isso, e dizer que “definitivamente, o interesse pelo Brasil caiu bastante”, pode ser uma opinião de alguém no botequim com os amigos. Pode ser um desejo de quem diz.

Como nota em uma coluna de informações, é mau jornalismo. É irresponsabilidade.

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Em tempo: sou fã do Ancelmo Gois. É uma das minhas leituras obrigatórias, todo santo dia. É porque ele é importante, é porque ele escreve em um dos três grandes jornais do país, é porque prezo demais o papel da grande imprensa que escrevo o que escrevi acima.

E vou logo dizendo o que o Ancelmo diria, se se desse ao trabalho de ler esta crítica a ele: irresponsible news é o cacete!

         26/1/2018

P.S.: Na coluna do sábado, 27/1, Ancelmo Gois publicou a seguinte nota:

“O presidente Temer rebateu a nota ‘Brasil saiu da moda’, publicada aqui, mostrando que foi-se o tempo em que o país era o queridinho em Davos, como potência emergente ao lado da China, Índia e Rússia. A nota do Palácio lista compromissos importantes do presidente no fórum mundial. Ficamos assim: Temer foi bem. Já o Brasil… deixa pra lá.”

“Brasil passa despercebido no Fórum”. O título de O Globo do sábado parece até ter sido feito para me desmentir e dar razão a Ancelmo Gois. É uma matéria da enviada especial Martha Beck:

O texto, porém, concorda com o que escrevi: o interesse maior dos participantes do Fórum de Davos era – como não poderia deixar de ser – pelos Estados Unidos de Donald Trump:

“O presidente Michel Temer veio ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, para dizer ao mercado internacional que ‘o Brasil voltou’. Mas, se isso aconteceu, pouca gente parece ter notado. Apesar da agenda intensa de reuniões, almoços e jantares com empresários e investidores e da maior comitiva em anos – vieram ministros, parlamentares, presidentes de estatais – Davos estava mais interessada na queda de braço entre as economias desenvolvidas, que medem forças desde que o presidente dos Estados Unidos Donald Trump assumiu e decidiu pregar o protecionismo.”

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