Heróico, viril e vil

Todo o passado é sincrético. Como sabem, John Gilbert é um actor do tempo de Homero, Greta Garbo, Ben-Hur ou não fosse o cinema uma invenção mediterrânica. Um dos criadores desse cinema da antiguidade clássica foi Louis B. Mayer. Judeu, claro. Como Aquiles, era heróico, viril e vil. De poderoso soco. Basta vê-lo, à porta do Alexandria Hotel, aos murros a Charlie Chaplin. Foi em Los Angeles: na minha antiguidade clássica já havia América e hotéis de cinco estrelas.

Mas é de outro soco que falo. A viking Greta Garbo chegara a Hollywood. Ia filmar Temptress, auto-estrada de adultérios em cadeia. Isto passou-se em 1925 e 1926, anos de lânguido aquecimento e dilatação dos corpos em Hollywood, como o provam os filmes que Mayer então produziu.

Queriam convidar John Gilbert para acasalar com a Garbo. Gilbert ainda não a vira, nem a queria ver. Tinha na cabeça outro filme e foi contar a história a Mayer, seu boss: numa idílica Inglaterra, um rapazinho decente vive com a mãe viúva, honrando-a com amor incondicional até se apaixonar por uma prostituta que o alivia da virgindade. Uma espiral de perdição arrasta o bom moço: assaltado por uns ciúmes mouros mata o amante da amante e é condenado às galés.

“Mas que disparate de filme, um rapazinho honesto com uma prostituta”, enervou-se Mayer. Gilbert agarrou-se às artes, à Dama das Camélias, de Dumas, à Anna Christie, de Eugene O’Neill: “É a mesma coisa”, disse o actor.

Mayer chamou bastard a Gilbert e juntou-lhe este mimo: “Só um depravado é que mete uma puta na história da mãe amada e do seu filhinho.” Gilbert não se conteve: “O que é que tem? A minha mãe era puta!” Já o fulminante punho de Mayer se lhe cravava no queixo, fazendo-o morder a alcatifa. “Devia cortar-te os tomates por dizeres isso.” Gilbert levantou-se. Sem punhos, mas com voz: “Mesmo sem tomates, sou melhor do que tu.” Seguraram Mayer que o queria matar. “Maçã podre… não tem amor à mãe.”

O irrestrito amor de Mayer à mãe é uma chave para a história do cinema americano. Nesses anos de Lei Seca, Mayer tinha no estúdio um tipo encarregado de arranjar bom álcool, tinha um bordel para as visitas, dois homens para apagar as malfeitorias das suas estrelas, um gabinete médico para os abortos das actrizes. Rendido às debilidades do mundo, redimia-o o homérico amor à mãe.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia. 

Na foto do alto, Mayer e a mulher, outra mãe. Logo acima, John Gilbert. 

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