Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar

O fim do mundo é anunciado desde a era pré-diluviana. Em 1938 Carmem Miranda imortalizou o samba de Assis Valente “O mundo não se acabou”, uma sátira a quem acreditou nessa conversa mole, beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia.

A nova versão do fim do mundo é o julgamento de Lula, visto pelas torcidas organizadas como o dia do juízo final. Para os petistas, a condenação do morubixaba é o próprio apocalipse. Só lhes restaria travar sua Armagedom, com o caudilho encarnando Cristo na batalha final contra os infiéis.

O fundamentalismo não é monopólio do PT. Com sinal trocado o mesmo sentimento se manifesta no outro campo, onde uma hipotética absolvição de Lula é vista como o próprio fim do mundo. Por isso os dois lados estão pondo suas torcidas nas ruas.

Uma anomalia, sem dúvidas. Numa democracia, a Justiça se pronuncia a partir do que está nos autos e não em decorrência da “pressão das massas”. Num impeachment, por ser um julgamento político, é perfeitamente legítima a pressão da sociedade, a favor ou contra. Já num julgamento jurídico, a pressão perde inteiramente o sentido.

Acontece que o mundo não vai acabar, seja qual for o desfecho do julgamento. O Brasil real passa ao largo desse clima. Não há, sequer, aquela curiosidade sobre quem matou Odette Rottman. O país não vai parar em frente à televisão à espera do veredicto do Tribunal Federal da Quarta Região.

Milhões de brasileiros não irão às ruas para comemorar ou protestar sobre o resultado. Suas motivações hoje são outras: a vacina contra a febre amarela, o emprego, a sobrevivência de sua família, o carnaval que bate à porta. As manifestações tendem, portanto, a ficar restritas à militância petista e seus círculos próximos.

O clima do país é de normalidade. Se algo o julgamento de Lula evidencia é a resiliência das instituições brasileiras, apesar de todas as suas mazelas. Eis algo a ser comemorado: o arcabouço institucional consignado na Carta Constitucional de 1988 tem seus freios e contrapesos e tem funcionado satisfatoriamente. Necessita a ser aperfeiçoado? Claro, mas com cuidado para não se jogar fora a criança junto com a água suja da banheira.

Este arcabouço não terá seus alicerces abalados seja qual for o parecer da segunda estância da justiça Federal. Caso confirme-se a condenação de Lula, teoricamente há o risco de o PT querer por o país em chamas, mas se for por aí será o maior prejudicado.

O mundo não vai acabar nem mesmo para Lula e o PT. O caudilho não estará morto politicamente mesmo se sua foto não estiver na urna eletrônica. Tem poder de fogo para transferir uma quantidade suficiente de votos para colocar o seu preposto no segundo turno. Como diziam os filósofos, a vida continua. O PT não adotará uma estratégia kamikaze que inviabilize a reeleição de seus parlamentares e de seus governadores.

O mesmo vale para o outro campo. Reconhecendo que o caudilho é um osso duro de roer mas está longe de ser imbatível. Isso valia para o Lula de 2010, quando tinha força para eleger até uma Dilma Rousseff. Hoje tem um telhado de vidro oceânico.

O julgamento de Lula não é o Dia D de um Brasil de uma economia diversificada, de uma sociedade plural e de instituições sólidas, que nos diferenciam de uma Venezuela da vida.

Como o sol não vai nascer antes da madrugada, os brasileiros podem pular no ensaio do seu bloco carnavalesco. Só não pode transar sem camisinha porque o mundo não vai se acabar.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, na manhã de 24/1/2018. 

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