A diplomacia do rinoceronte na loja de cristais

Durante 13 anos, 4 meses e 12 dias, o lulo-petismo desgraçou a política externa do Brasil. Em vez de continuar usando a diplomacia para defender os interesses do país, e, diante dos conflitos entre nações, manter  a postura de independência, neutralidade e procura por entendimento, os governos lulo-petista ideologizaram a política externa. Puseram a diplomacia a serviço dos interesses do partido, e não dos interesses da nação.

Assim que Dilma Rousseff foi afastada, acusada de crime de responsabilidade, houve um bem-vindo realinhamento, com José Serra e depois Aloysio Nunes no Ministério das Relações Exteriores. No governo Temer, foi retomada a diplomacia que caracterizou o país ao longo de muitas décadas.

Pelo que se tem visto e ouvido nos últimos dias, a partir de 1º de janeiro de 2019 teremos um período de 4 anos de nova desgraceira. Mais uma vez a diplomacia brasileira será ideologizada – no sentido absolutamente inverso ao do PT, mas com resultados igualmente ruins para o país.

Sob o lulo-petismo, a política externa brasileira seguiu um infantil anti-americanismo, uma desavergonhada bajulação de ditaduras ou governos autoritários (Cuba, Irã, Coréia do Norte, Venezuela, a Líbia do Khadafi, Bolívia) e uma equivocada e contraproducente ênfase às relações Sul-Sul. Para o PT, a estratégia deu frutos: são sem dúvida bastante rentáveis as relações com ditaduras africanas e países bolivarianos, através da promoção de obras tocadas por empreiteiras amigas, Odebrecht à frente, com empréstimos do BNDES e propina a rodo.

Já para o Brasil, a diplomacia dos anos de lulo-petismo significou o afastamento das economias desenvolvidas e a perda de oportunidades no comércio internacional. Enquanto países vizinhos como Chile e Colômbia – – faziam acordos comerciais bilaterais vantajosos, o Brasil ficava estagnado. Em 13 anos, 4 meses e 12 dias de governos lulo-petistas, o Brasil voltou a ser basicamente um exportador de matéria-prima.

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Economistas e jornalistas de economia repetem sempre: responsabilidade fiscal não é política de esquerda nem de direita – é apenas a política correta.

Da mesma forma, diplomacia engajada, ideologizada, seja de esquerda, seja de direita, é apenas a diplomacia errada.

Tome-se apenas um pequenino exemplo: o caso do terrorista italiano Cesare Battisti.

Battisti foi condenado pela Justiça italiana à prisão perpétua por quatro assassinatos cometidos quando ele era membro do grupo guerrilheiro Proletários Armados pelo Comunismo. Fugiu para a França, passou pelo México e se estabeleceu no Brasil.

É um criminoso, assassino, condenado pela Justiça de seu país – não uma ditadura, em que a Justiça obedece às ordens do ditador, mas uma das mais sólidas democracias do mundo.

Deveria ser extraditado para a Itália.

Por motivos eminentemente políticos, por simpatia ideológica, o lulo-petismo impediu que ele fosse encaminhado a seu país.

Agora, menos de 10 dias depois de ter sido eleito presidente da República, Jair Bolsonaro anuncia que fará tudo o que for legal para extraditar Battisti imediatamente.
De novo, por motivo político. Porque é de esquerda. Se fosse um terrorista de direita, seguramente Jair Bolsonaro não estaria interessado no assunto.

É uma atitude tão ideologizada quanto a do lulo-petismo em ter dado ao criminoso condenado status de refugiado político. E, como muito bem o jornalista Carlos Marchi, há assuntos muitíssimo importantes que deveriam estar ocupando a cabeça do presidente eleito.

É emblemático. É gritante. É ridículo. Diminui o tamanho do Brasil aos olhos do mundo. Comprova que De Gaulle estava certo quando disse, se é que disse exatamente isso, que Le Brésil, c’est pas un pays sérieux.

A foto abaixo, de José Cruz/Agência Brasil, é de 11/2009. Entre os deputados e senadores que foram visitar o terrorista condenado na Itália – então preso em Brasília – estão José Nery (PSOL-PA), Eduardo Suplicy (PT-SP), Chico Alencar (PSOL-RJ) e Ivan Valente (PSOL-SP). 

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O caso Battesti é um detalhe, mas é emblemático. Já o caso transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém é trágico.

E não é um detalhe. É um erro imenso, gigantesco, amazônico, jupiteriano.

Reconhecer Jerusalém como capital de Israel significa deixar de lado, definitivamente, qualquer remota esperança de que se resolva o conflito árabe-israelense com o estabelecimento de dois Estados, o israelense e o palestino.

Reconhecer Jerusalém como capital de Israel não é bandeira sequer de boa parte do espectro político israelense (a não ser que eu esteja totalmente enganado). Essa é uma bandeira da extrema direita israelense, do Likud, do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu – que é uma espécie assim de Jean-Marie Le Pen de Israel.

Donald Trump, aquele estrupício, aquele rinoceronte em loja de cristais, transferiu a embaixada dos Estados Unidos de Tel Aviv para Jerusalém. Só um país, entre os mais de 180 representados na ONU, seguiu o caminho do estrupício laranja: a Guatemala.

Quando Bolsonaro assumir, serão dois.

Se pessoas sensatas que o cercam não o fizerem desistir da idéia.

Ou será que não há pessoas sensatas perto dele?

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Nesta terça-feira, 6/11, os imensos equívocos anunciados para a política externa do governo Bolsonaro foram tema de editorial do Estadão e dos artigos de Merval Pereira, José Casado, Míriam Leitão e Eliane Cantanhede. Meu Deus, que time de jornalistas competentes, dos melhores do país!

São unânimes nas criticas. Varia um pouco o tom, variam um pouco os exemplos – mas o conjunto de textos compõe um alerta apavorante sobre os tempos sombrios que estão por vir.

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Questão de imagem

Merval Pereira, O Globo, 6/11/2018

É preocupante o rumo que Jair Bolsonaro parece querer imprimir à política externa, que poderá pôr em risco a credibilidade das instituições brasileiras e promover a importação de ódios e terrorismo, em vez de exportar concórdia, resultante do convívio harmônico entre judeus e árabes, de que o país é exemplo.

Além do mais, o presidente eleito terá que lidar com um problema adicional: a péssima imagem que tem no exterior, que contamina a do próprio Brasil. Seu futuro chanceler terá que ter credibilidade para reverter essa imagem, e suas ações contribuirão para facilitar ou dificultar o trabalho do futuro ministro das Relações Externas, que por isso mesmo precisa ser da carreira e com experiência para aguentar o tranco que vem por aí. Ele, que ficou tão irritado com o comentário do ex-presidente Fernando Henrique sobre sua imagem no exterior, tem que se preocupar mais com o tema.

A contribuição da política externa para o desenvolvimento, não apenas econômico, mas cultural, do país começa pelo estabelecimento de temas prioritários na agenda internacional, para nos colocarmos ao lado das melhores práticas: desenvolvimento sustentável, atração de investimentos externos, absorção de conhecimento e tecnologia, parcerias capazes de aumentar a produtividade, estimular a inovação e tornar o Brasil mais empreendedor e competitivo.

O novo governo vai ter que sopesar a importância das tradições, princípios e valores de nossa diplomacia, amplamente reconhecidos no mundo, antes de tomar decisões tão polêmicas quanto, por exemplo, a transferência de Embaixada para Jerusalém. O governo do Egito, por exemplo, já cancelou uma visita oficial do ministro das Relações Exteriores brasileiro.

As decisões tomadas no âmbito das Nações Unidas pela comunidade internacional, para as quais contribuímos em diferentes momentos, inclusive com a participação de Oswaldo Aranha na partilha da Palestina, em 1947, têm que ser levadas em conta, evitando-se o voluntarismo. Princípios, como o da igualdade soberana dos Estados, o da solução pacífica das controvérsias, o da autodeterminação dos povos e o do primado do direito, consagrados na Constituição, precisam ser preservados.

Retrocessos nessa área não seriam circunstanciais, teriam impacto no papel do Brasil no mundo, em sua imagem historicamente construída. Num mundo em transformação, é cada vez mais difícil para um único país, por maior que seja o seu poder, moldar por si só a globalização. O exemplo dos Estados Unidos parece fascinar o presidente eleito Jair Bolsonaro, mas ele tem que entender que o Brasil, por maior que possamos ser no continente, é periférico na geopolítica internacional.

Desdenhar da China, nosso principal parceiro comercial, afastar-se do Mercosul bruscamente, menosprezar a Argentina como parceira regional importante, tudo parece improvisado e ditado por uma política ideológica de que o próprio presidente eleito acusa os governos anteriores.

Além do mais, há exemplos históricos, aqui e no exterior, que mostram que são os governos conservadores os mais capazes de darem passos importantes na quebra de paradigmas, com o objetivo do interesse nacional. Em 1974, em plena ditadura militar, o governo Geisel reatou relações com a China, na gestão do chanceler Azeredo da Silveira, considerado à época comunista, mas que tinha o pragmatismo responsável como norte de sua atuação.

Também foi com Geisel e Silveirinha que o Brasil reconheceu a independência das colônias de Portugal,inclusive Angola, do governo esquerdista do Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA). Foi também no governo do republicano Richard Nixon que, seguindo a política traçada pelo Secretário de Estado Henry Kissinger, os Estados Unidos reataram as relações com a China.

Quando falo que o Brasil perde a capacidade de interlocutor, refiro-me principalmente à nossa região. Aconteceu, por exemplo, na Colômbia, cujo governo de direita não aceitou a mediação do Brasil com as Farc por nos considerar tendenciosos à esquerda.

Mas não precisa também achar que será um grande líder mundial, como aconteceu com Lula, amarrado a uma política externa do chanceler Celso Amorim que visava à sua consagração internacional.

Em 2010, o Brasil, juntamente com a Turquia, se ofereceu como mediador com o Irã na crise de seu programa nuclear. Chegou até a conseguir uma promessa de acordo, que acabou sendo bombardeada pelos Estados Unidos justamente por desconfiança dos objetivos. Cinco anos depois, os Estados Unidos e países da Europa fecharam um acordo que hoje o presidente Trump quer encerrar.

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Bolsonaro no buraco

José Casado, O Globo, 6/12/2018

Aconteceu numa segunda-feira de 55 anos atrás, na Manhattan de um mundo em Guerra Fria, quando Jair Bolsonaro era apenas um garoto nas ruas descalças de Ribeira (SP), a oito mil quilômetros de distância.

Cinco homens e uma mulher entraram no 112-Oeste da Rua 48, Nova York. Há meses Astrud Gilberto (voz), Antonio Carlos Jobim (piano), Tião Neto (baixo), Milton Banana (bateria), João Gilberto (violão) e Stan Getz (sax) lutavam para apresentar a bossa nova ao público.

Nos ensaios faltou sintonia entre Getz e João, relata Ruy Castro em “Chega de saudade”. O baiano explodiu: “Tom, diga a esse gringo que ele é burro.” O carioca Jobim virou-se para o americano e traduziu: “Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.”

Foi um dos grandes momentos da diplomacia brasileira: o disco “Getz/Gilberto” abriu o mercado dos EUA e da Europa para a bossa nova.

Bolsonaro não possui átomo da genialidade diplomática de Jobim, mas seria um poeta se falasse menos sobre política externa no seu mandato.

Em uma semana (lapso de tempo em que os seis de Nova York lapidaram um revolucionário Made in Brazil), Bolsonaro e equipe conseguiram semear tensões e incertezas sobre o futuro do Brasil com Argentina, Paraguai e Uruguai (sócios no Mercosul), China, Cuba, União Europeia, países árabes e muçulmanos.

Presidente eleito de um país desesperado para ampliar exportações e receber investimentos estrangeiros, Bolsonaro resolveu desprezar um quarto do mercado global, com três bilhões de consumidores. Semana passada a China advertiu, publicamente, que uma ruptura vai “custar caro” ao Brasil. Ontem, o Egito recusou-se a receber o chanceler brasileiro, em reação ao alinhamento do Brasil ao governo Trump na mudança da embaixada para Jerusalém.

Bolsonaro pode não gostar da melodia de Tom e preferir o punk-brega de Trump, mas deveria ouvir o conselho grátis do bilionário Warren Buffett, um conservador: “Se você está num buraco, a coisa mais importante a fazer é parar de cavar.”

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O que evitar na política externa

Míriam Leitão, O Globo, 6/11/2018

Diplomacia é arte de delicada tessitura. Mesmo para endurecer é preciso saber como fazer e qual é o passo seguinte, como num jogo de xadrez. E só deve ter um norte: o interesse do Brasil. O próximo governo tem falado qual será a política externa antes de escolher o futuro ministro. Como candidato, Jair Bolsonaro fez declarações das quais teve que recuar. Como presidente eleito deveria evitar precipitações porque suas palavras têm enorme peso agora. Nos governos Geisel e Figueiredo o Brasil retomou a política externa não ideológica e não alinhada aos Estados Unidos, que, depois, foi seguida em governos democráticos.

Os ministros Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, nos governos Geisel e Figueiredo, conduziram o chamado “pragmatismo responsável”. O Itamaraty retomou, naquela época, o caminho de uma política externa independente que havia sido abandonada no início do regime militar.

Um dos exemplos dessa política ocorreu em novembro de 1975 quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo angolano que havia declarado a independência em relação a Portugal, e era comandado pelo MPLA, que se declarava marxista. Uma parte do país era dominada por outro grupo guerrilheiro, a Unita, que anos depois perdeu a guerra.

Geisel, em março de 1977, rompeu o acordo militar com os Estados Unidos assinado nos anos 1950. Era uma forma de o Brasil escolher seu caminho também nesta área. O então presidente chegou a pensar num rompimento de outros acordos, mas foi aconselhado pelos diplomatas a esperar a reação americana com cartas na manga. Tudo o que os Estados Unidos fizeram foi enviar o general Vernon Walters ao Brasil para tentar demover o país, missão que fracassou.

O voto antissionista na ONU em 1975 causou bastante polêmica. Ele considerava o sionismo uma forma de discriminação. A questão dividiu a ONU e os países, mas a decisão brasileira foi vista como autônoma. Foi uma etapa importante da aproximação com os países árabes com quem o Brasil tem um comércio vigoroso. Foram instaladas unidades especiais só para fornecer frango para os árabes.

A transferência da sede da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ter como efeito bumerangue a retaliação comercial dos árabes ao Brasil. Mas principalmente é ruim por significar um retrocesso no não alinhamento automático com os Estados Unidos, um dos avanços conseguidos na diplomacia dos últimos governos militares. Só um país do mundo, a Guatemala, seguiu os Estados Unidos nessa decisão.

No período João Figueiredo, o Brasil se recusou várias vezes a entrar em conspirações e conflitos na região, nos quais os Estados Unidos de Ronald Reagan tentaram nos envolver. Em uma dessas vezes houve um fato que ficou famoso. O subsecretário americano Thomas Enders veio ao Brasil tentar convencer o país a participar da tentativa de derrubar o governo sandinista. O ministro Saraiva Guerreiro costumava fechar os olhos e respirar profundamente no meio das conversas, o que levava o interlocutor a achar que ele dormira. Enders explicava que o Brasil deveria integrar uma força militar para a intervenção contra o governo sandinista, e Guerreiro fechou os olhos durante a longa explanação, deixando o americano desconcertado. Quando parou de falar, Guerreiro perguntou:

— Do you believe in God, mister Enders?

O subsecretário, cada vez mais confuso, disse que sim, acreditava em Deus. Ao que Guerreiro respondeu em inglês:

— Então vamos rezar pelo povo da Nicarágua.

Com essas e outras o Brasil, diplomaticamente, evitou virar uma espécie de ajudante americano na região ou entrar em brigas dos Estados Unidos, como as sanções que o governo Carter tentou aplicar contra a União Soviética. O atual presidente Donald Trump cria arestas com todo mundo, inclusive aliados. Seria um erro estratégico enorme o Brasil aceitar ser caudatário dos Estados Unidos.

O pior que pode nos acontecer é depois de termos saído de uma política externa ideológica de esquerda, irmos para outra ideológica de ultra-direita. A diplomacia tem que defender os interesses do país, de forma equilibrada e pragmática. Quando outros elementos, como manias e idiossincrasias do governo de plantão, entram nas decisões algo dá sempre errado. (Com Marcelo Loureiro)

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Política externa e sensatez

Editorial, O Estado de S.Paulo, 8/11/2018

A diplomacia terceiro-mundista do mandarinato lulopetista é o exemplo daquilo que o Brasil deve evitar se pretende deixar a condição periférica no grande jogo político e econômico mundial. Alinhar-se a ditaduras companheiras na América Latina a pretexto de promover a integração regional e a cleptocracias africanas a título de aprofundar laços com o continente africano nada trouxe de bom para o País, servindo somente para atender ao corrupto projeto de poder do PT. Esse, aliás, certamente foi um dos motivos pelos quais grande parte dos eleitores manifestou seu profundo repúdio ao PT nas urnas, elegendo como presidente o perfeito antípoda do lulopetismo, o deputado Jair Bolsonaro.

Isso não significa, porém, que o próximo presidente tenha de fazer exatamente o oposto da diplomacia lulista. O que é preciso é retornar a uma política externa historicamente equilibrada, das soluções de compromisso, do respeito ao direito internacional e disposta ao entendimento multilateral. A julgar pelas declarações de Bolsonaro sobre como deverá ser o comportamento de seu governo nas relações com o resto do mundo, há razões para acreditar que as decisões nessa seara serão pautadas pelo voluntarismo, que por definição não mede consequências, e não por uma política externa sóbria e responsável, baseada na melhor tradição do Itamaraty – que, para Bolsonaro, foi “aparelhado” pelo PT. Isso, de fato, aconteceu, mas esse desatino não se corrige com outro.

Na prática, Bolsonaro parece inclinado a adotar um alinhamento automático com os Estados Unidos, em razão de suas supostas afinidades com o presidente Donald Trump – que, como se sabe, está em guerra comercial com a China. Na campanha, Bolsonaro acusou os chineses de “comprarem o Brasil”. A China, principal destino das exportações brasileiras e um dos grandes investidores no País, reagiu logo: em editorial em um jornal estatal, Pequim informou que o custo econômico de um enfrentamento com a China “pode ser duro para a economia brasileira”.

Em outro vespeiro que teve a imprudência de mexer, Bolsonaro prometeu transferir a Embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém – cidade reivindicada tanto por Israel como pelos palestinos como capital, razão pela qual a maioria absoluta dos países mantém suas embaixadas em Tel-Aviv. Mantém-se aberta, assim, a possibilidade da solução palestino-israelense pela via dos dois Estados. No Twitter, o presidente eleito disse que tomou a decisão porque “Israel é um Estado soberano”, e por isso pode escolher a capital que bem entender. Trata-se de um reducionismo agreste, que se presta somente a alinhar o futuro governo ao de Trump. Para o Brasil, tal medida, se vier mesmo a ser tomada, trará escassos ganhos e representará indesejada guinada na posição do País em defesa de uma solução pacífica para o conflito entre Israel e os palestinos, sem tomar partido de nenhum dos lados. E há também uma questão prática: os países árabes ameaçam fechar aos exportadores brasileiros um mercado de R$ 13 bilhões.

A perspectiva de terra arrasada na política externa passa também pela ameaça de tornar o Mercosul irrelevante. O futuro governo já deixou claro que prefere apostar nas relações bilaterais. Não será tarefa simples: a Constituição diz, em seu artigo 4.º, que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina”, o que inclui o Mercosul.

Tal hostilidade do futuro governo ao Mercosul resulta em parte da certeza de que o bloco foi aparelhado pela esquerda latino-americana. É movido por essa visão binária que Bolsonaro prometeu rever laços diplomáticos com países governados pela esquerda no continente. Ora, o que endireitará os excessos da política externa lulopetista será a prudência e a estrita observância do interesse nacional – jamais a multiplicação por -1 daquela insensatez.

É provável que, uma vez no exercício do governo, Bolsonaro modere seu discurso. Não será com bravatas e atitudes irrefletidas que a futura administração cumprirá sua promessa de colocar o País entre os mais importantes do mundo.

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Brincando com fogo

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo, 6/11/2018

Quem brinca com fogo pode se queimar, mas quem está saindo chamuscado das propostas do presidente eleito Jair Bolsonaro não é ele, mas o Brasil. O duro artigo do governo da China e o duríssimo cancelamento de uma visita oficial do chanceler brasileiro ao Egito devem acender o sinal amarelo no QG de Bolsonaro, que tem uma grande vantagem: sabe recuar. Pois é hora de recuar.

Política externa é “de Estado”, não “de governo”, mas é óbvio que novos presidentes têm direito de fazer ajustes, calibrar o tom e deixar a sua marca nas relações com o mundo. Só não podem dar cavalo de pau, porque política externa se faz com credibilidade e estabilidade, para não atrair retaliações imediatas ou perda de imagem do País a médio prazo.

Aliás, se Bolsonaro condena a política externa ideológica do PT, ele não pode incorrer no mesmo erro, com uma política externa igualmente ideológica, no sentido inverso. Também não convém ignorar que o governo Temer já promoveu uma guinada de pragmatismo, reaproximando Brasília de Washington e afastando de Caracas.

Entre as bombas acionadas pelas falas de Bolsonaro na área internacional destaca-se a transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, rompendo décadas de neutralidade do Brasil no Oriente Médio, a favor de Israel e contra os Países Árabes, que têm fortes laços comerciais e culturais aqui.

O Egito – um dos árabes mais moderados – já chutou o pau da barraca, cancelando o convite para o chanceler Aloysio Nunes Ferreira ir ao país nesta semana com dezenas de empresários que, inclusive, já estavam no Cairo. E tudo por um voluntarismo de Bolsonaro. Mudar a embaixada para Jerusalém não muda absolutamente nada a favor do Brasil. Muito ônus para zero bônus. Aliás, só a Guatemala e os EUA de Donald Trump fizeram isso. O Paraguai, que tinha feito, já voltou atrás.

Outra bomba de Bolsonaro é acenar para Taiwan e dizer que “a China pode comprar no Brasil, mas não comprar o Brasil”. Em texto pouco usual no China Daily, seu porta-voz extraoficial, o governo chinês ameaçou retaliar e lembrou que a China é o nosso principal parceiro comercial, com um superávit mais do que favorável ao Brasil, e os dois países não competem entre eles, ao contrário, têm economias e interesses complementares.

Está em pauta a extradição de Cesare Battisti, que agrada a Itália e depende do STF, mas Bolsonaro já desativou três outras bombas: não fala mais em retirar o Brasil da ONU, que seria um escândalo; romper com o Acordo de Paris, no qual o Brasil defende não só os interesses do mundo, mas os seus próprios, inclusive do agronegócio; e unir Agricultura e Meio Ambiente, que foi um susto para a União Europeia, forte importadora de carne e soja e ciosa da sustentabilidade do planeta.

Quanto à ameaça de Bolsonaro de simplesmente romper relações com Cuba, ela não pareceu tão absurda assim para experientes diplomatas brasileiros, que ridicularizam a “grande democracia cubana” boicotando o Brasil em defesa do PT. Afinal, foi Havana quem retirou sua embaixadora de Brasília após o impeachment de Dilma Rousseff e jamais concedeu agrément para o embaixador Fred Meyer, um amigo de Cuba.

Fora isso, Bolsonaro está causando tanto ruído, à toa, por três motivos: desconhecimento de política externa, aliança com os evangélicos e um alinhamento, mais do que político, quase psicológico, a Trump. Vale dizer que, afora pequenos hiatos, o Brasil jamais teve alinhamento automático com nenhum parceiro, nem com a grande potência.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, diz o bordão de Bolsonaro. Em política externa, é “o interesse do Brasil acima de tudo e de todos”, inclusive das ideologias que, assim como vêm, também vão.

6/11/2018

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