Os vestidos de Caravaggio

Há um Salgueiro Maia na vida de Marilyn. Como tanques de Abril a deslizar no Terreiro do Paço, levantou-se um sopro revolucionário quando Marilyn trouxe a uma festa o mesmo vestido lamé dourado que usara numa cena de Gentlemen Prefer Blondes.

Esconde-se um nome e um homem nos bastidores dessa revolução. O homem chama-se William Travilla, tinha um bigodinho de anos 50 e, misturando escândalo, luxúria e poesia, desenhava vestidos como o cruel Caravaggio pintava rostos. Em oito filmes, Caravaggio, perdão, Travilla desenhou os vestidos que desenharam Marilyn.

Em 1953, deram-lhe o prémio de “Fastest Rising Star”. Marilyn quis fazer da vida um filme e disse que levaria à festa o vestido de ouro de Gentlemen. O primeiro a dizer não foi Joe DiMaggio, o Messi ou Ronaldo desse tempo, com quem se casara. O bem-aventurado decote tinha um metro, e o vestido, de tão cingido, pressupunha a peremptória e justa erradicação de soutien, calcinhas ou outras levezas interiores. Se o vestes, vais sozinha, disse DiMaggio.

A boca de Travilla, o designer, abriu-se num outro rotundo não. Que ela estava gorda demais para um vestido que era, em ouro metalizado, uma segunda pele. Mas Marilyn descobrira uma dieta infalível. Fazia uma lavagem colónica, vulgo clister, duas vezes por dia. A hidroterapia tirava-lhe peso na hora e Travilla deixou-se convencer.  Veio a casa de Marilyn coser-lhe o vestido ao corpo. Reparem, nem zíper, nem botões. Entrava-se, costurando o vestido ao corpo e era preciso cortá-lo para se sair.

Marilyn, sem DiMaggio, chegou à festa com duas horas de atraso. Travilla recomendou que fosse e viesse depressa, antes que as esticadas fibras do tecido explodissem em poalha dourada.

É ela que entra agora no repleto salão do Beverly Hills Hotel. Tivesse Nosso Senhor entrado e a sala não congelaria mais. Descongelou-a Jerry Lewis, mestre-cerimónias, subindo para uma cadeira e começando a uivar. E nem uma boa teria serpenteado sala dentro, como Marilyn fez. Com um meneio do derrière arrasou o espectáculo e arrancou uma ovação, disse na hora uma jornalista.

Já sem memória do seu belo e honesto passado dissoluto, a boca de Joan Crawford seria a escandalizada boca da reacção, acusando Marilyn de não ser uma senhora. Talvez não fosse: nascia, nesse vestido e nessa aparição, outra ideia de mulher. Vestida nos bastidores pelo discreto capitão William Travilla.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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