O Rio de Janeiro solou

Sabem quando fazemos, com todo carinho, um bolo para as crianças comerem na hora que chegam da escola com muita fome? E, na hora H, ao cortar o bolo, vemos que solou?
Pois é essa a sensação que tenho com o Rio. Está solado, deixou de ser aquele bolo delicioso que tanta alegria nos dava.

O Rio solou porque não respeitamos as regras elementares, sobretudo a que se refere aos ingredientes: não são de boa qualidade, estão com a validade vencida, e ficaram na prateleira do congelador por muito tempo…

A cidade assim solada, triste, assustada, afasta os seus e não apetece aos turistas.

As notícias (recentes) são apavorantes:

na fila do Instituto de Diabetes e Endocrinologia, no centro da cidade, ontem à tarde, os pacientes que aguardavam o acesso em fila, foram assaltados por quatro bandidos que levaram o que puderam;

na Linha Vermelha, no início da noite de ontem, tiroteios e muita confusão, como tem sido hábito.  A via, uma das mais importantes para o acesso à cidade, foi parcialmente interditada para que a Polícia Militar pudesse prender um traficante conhecido como ‘Charlinho’. Ele escapou, há boato de que foi baleado, estão fazendo buscas em hospitais para ver se o encontram;

mais cedo, na mesma região, houve intenso tiroteio entre o bando do tal ‘Charlinho’ e policiais da 59ª delegacia, a ponto da população achar que a delegacia estava sendo atacada, segundo os delegados. Não estava. Tudo não passava de uma das batalhas diárias entre a Polícia e os traficantes;

anteontem, o tiroteio na mesma Linha Vermelha obrigou os motoristas a se abrigarem no 22º BPM (Maré). Os que buscaram abrigo estavam muito assustados, ainda mais quando a energia foi cortada e o batalhão ficou às escuras. Dá para sentir o medo das pessoas: idosos, crianças, adultos, no escuro e ouvindo um forte tiroteio;

na noite de anteontem um homem morreu com um tiro no rosto na Avenida das Américas, numa tentativa de assalto;

um serviço essencial para a cidade pode parar a qualquer momento: a empresa terceirizada que opera a central telefônica que atende ao pedido de ambulâncias (SAMU) pode parar por falta de dinheiro. É isso mesmo, a dívida do governo do Estado com eles já está em mais de R$10 milhões. São vencimentos atrasados desde dezembro de 2016!

Tudo isso mexe conosco de modo muito negativo. Estamos sempre com o coração na mão, preocupados com os nossos. No que se refere às crianças, então, a situação é mais grave. A UNICEF, reunida em Genebra, atesta que escolares do Rio estão sob grande risco de não desenvolverem integralmente o seu potencial. De acordo com a UNICEF, “estudos mostram que interrupções repetidas em ambientes de violência afetam negativamente a habilidade das crianças de se concentrarem e aprenderem sem medo. Precisar buscar abrigo e esconderijo e até testemunhar episódios de violência têm um grande impacto psicossocial nas crianças e várias relatam sofrerem de síndromes de estresse, como pesadelos e crises de ansiedade. Crescer em um ambiente com frequentes episódios de violência armada também pode fazer com que as crianças percebam a violência como o procedimento normal na resolução de conflitos”.

Na antessala do horror em que nos transformaram, o bolo definitivamente solou.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 21/7/2017. 

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