Não lhes posso dar murros

A nostalgia da mãe. Tal como John Ford, em cuja boca nunca entrou e ainda menos saiu a palavra “nostalgia”, mas que tinha nostalgia de tudo, o japonês Kenji Mizoguchi reclama a nostalgia da mãe.

Foi o realizador de filmes como A Vida de O’Haru, Os Contos da Lua Vaga e Os Amantes Crucificados, a que a minha geração ajoelhou e rezou, mesmo sem saber nada do Japão na maioria dos casos, horda ignorante a que pertenço, e que escutar até às três da matina o cineasta Paulo Rocha, à porta da Cinemateca, a perorar sobre o sensual roçagar de um quimono não releva.

Mas deixemos a ignorante boca aberta com que lhe vimos os filmes, para ouvirmos Mizoguchi. O pai tinha um negócio e faliu. Correu mal e desatou a beber ou já bebia e correu mal. E se uma falência não é soneto que se cheire, a emenda foi pior. O pai vendeu a irmã de Mizoguchi a uma casa de gueixas, alindado termo étnico que usamos, com acordes de shamisen, para não lhes chamar putas.

Isto sim é o começo de um romance que nunca mais lhe largou a vida e a obra. Afirmava ser um homem violento e os filmes dele estão impregnados de funda tristeza. Há outros filmes carregados de tristeza na história do cinema, mas a tristeza de Mizoguchi é lentíssima, feita de longos planos e movimentos de encenação milimétrica. O perfeccionismo com que cantou essa tristeza, arrancou-o ele a golpes autoritários e murros dados a técnicos e actores. Com uma ressalva: “… mas se é uma actriz, por muito que me zangue, não lhe posso dar murros!”

Todo o autoritarismo gera lealdade e relações apaixonadas, como a de Mizoguchi com Kinuyo Tanaka, actriz de 15 filmes dele, que arrancou os dentes todos para, rameira de baixo coturno, parecer velha e desdentada no final da Vida de O’Haru, jurou Paulo Rocha.

Ninguém sabe se foi a nostalgia da mãe, se o trauma da venda da irmã, mas o fascínio pela mulher vítima, e um certo prazer na contemplação dela vítima é a cama em que mais vezes se deita o cinema de Mizoguchi. Das camas em que se deitou ele mesmo, sabe-se que levou a mulher à loucura e a meteu num asilo, passando a viver com a irmã mais nova dela. Andaria nisso o fantasma da irmã gueixa?

A nostalgia da mãe confessou-a com esta candura: “Gosto de mulheres gordas. Talvez por a minha mãe ser gorda e ter morrido, era eu ainda jovem. Parece ridículo dizê-lo, prefiro as gordas. Sim, atraem-me muito.”

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *