Meryl defende a luz

74th Annual Golden Globe Awards - Season 74

A cerimônia de entrega dos Globos de Ouro de 2017 teve diversos momentos fascinantes, emocionantes, memoráveis. Mas foi Meryl Streep que – como faz sempre nos filmes – roubou a cena.

Meryl Streep foi a homenageada com o prêmio especial do ano, o prêmio Cecil B. De Mille, pelo conjunto de sua obra – meu Deus do céu e também da terra, que obra! Meryl é a melhor da sua geração, é a melhor dos anos 80, dos 90, dos 2000, dos 2010. Da mesma estatura de Meryl há poucas, bem poucas – e eu nem mesmo ousaria dar seus nomes, por pavor de esquecer algum fundamental. Bem, lá vai: Katharine Hepburn, claro. Bette Davis. Jane Fonda. Liv Ullman. Catherine Deneuve. Sophia Loren.

zzviolaPara apresentar o prêmio especial do ano de 2017 para Meryl Streep, pôs-se no palco Viola Davis – e Viola Davis estava absurdamente bela, nesta noite. Viola é uma daquelas atrizes que são capazes de muitos rostos diferentes, ao longo dos anos, mas nunca a tinha visto tão bela quanto agora. Havia aparecido antes, na cerimônia-show, para apresentar algum candidato a prêmio, e tinha falado no pai nascido em 1936, durante a Grande Depressão, na Carolina do Sul, um dos Estados mais racistas daquele país em que a chaga do racismo é especialmente forte, presente sempre – um pai que só tinha conseguido chegar ao quinto ano da escola, com dificuldades para aprender a ler.

Ela mesmo, Viola Davis, concorria ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante por Cercas/Fences, dirigido e também interpretado pelo deus Apolo Denzel Washington, baseado numa peça do escritor August Wilson premiada com o Pulitzer quando foi lançada.

Vinha de uma série de quatro outras indicações ao Globo de Ouro: por Dúvida/Doubt (2008), Histórias Cruzadas/The Help (2011) e pela série de TV How To Get Away With Murder, duas vezes consecutivas, nas cerimônias de 2015 e 2016. Sem falar das duas indicações ao Oscar, por Dúvida e Histórias Cruzadas.

Este ano, finalmente, Viola Davis levou a estatueta da Hollywood Press Association para casa.

Depois do belo discurso da atriz sobre Meryl Streep, em que falou de quando trabalharam juntas em Dúvida, veio, claro, o clipe que juntava trechos de filmes da homenageada.

É coisa para qualquer cinéfilo ficar vendo e revendo e revendo de novo no mais puro êxtase.

E aí veio o momento maior de toda a festa: Meryl Streep subiu ao palco para o discurso de agradecimento.

E fez um discurso totalmente, absolutamente, desbragadamente político.

Sou um sujeito velho, e vejo cerimônias de premiações de Hollywood há um número absurdo de anos, mas não me lembro de nenhum  discurso político tão forte, tão virulento, tão maravilhoso quanto este de Meryl Streep.

Meryl Streep dedicou seu discurso de agradecimento pelo prêmio especial do ano de 2017 a desancar com o presidente eleito Donald Trump e a defender a diversidade e os imigrantes de todos os cantos do mundo. Fez uma vigorosa defesa de tudo o que é o oposto ao discurso xenófobo e racista dele.

Meryl Streep reduziu Donald Trump ao que ele é: um canastrão horroroso, de vigésima nona categoria. Naturalmente, não foi pronunciado o nome do alucinado que a partir do dia 20 de janeiro será o homem mais poderoso do planeta.

Eis o discurso da maravilhosa atriz:

“Obrigado, Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Vocês e todos nós aqui neste lugar realmente pertencemos aos segmentos mais demonizados na sociedade americana neste momento. Pensem nisso: Hollywood, estrangeiros, e a imprensa.

“Mas quem somos nós? E o que é Hollywood, afinal? É só um bando de pessoas de outros lugares. Eu nasci e fui criada e educada nas escolas públicas de New Jersey. Viola nasceu na casinha de meeiros na Carolina do Sul, cresceu em Central Falls, Rhode Island. Sarah Paulson nasceu na Flórida, foi criada por uma mãe solteira no Brooklyn. Sarah Jessica Parker foi uma das sete ou oito crianças de Ohio. Amy Adams nasceu em Vicenza, Veneto, Itália. E Natalie Portman nasceu em Jerusalém. Onde estão as certidões de nascimento delas? E a bela Ruth Negga nasceu em Adis Abeba, Etiópia, foi criada na Irlanda, creio, e foi indicada por interpretar uma moça de cidade pequena da Virginia. Ryan Gosling, como tantas ótimas pessoas, é canadense. E Dev Patel nasceu no Quênia, foi criado em Londres, e está aqui por interpretar um indiano criado na Tasmânia. Então Hollywood está repleta de gente de fora e estrangeiros, e se nós pusermos todos para fora, vocês não terão nada a que assistir, a não ser futebol americano e artes marciais mistas, que não são artes. (…)

“Eles me deram três segundos para dizer isso. O único trabalho do ator é entrar na vida de pessoas que são diferentes e fazê-las se sentirem como as outras. E há muitas, muitas, muitas performances poderosas este ano que fazem exatamente isso, são de tirar o fôlego, um trabalho feito com paixão.

“Mas houve uma performance este ano que me chocou. Fisgou meu coração não porque fosse boa. Não havia nada de bom nela – mas foi efetiva e fez seu trabalho. Ela fez a sua audiência rir e mostrar os dentes. Foi aquele momento em que a pessoa que pedia para se sentar na mais respeitada cadeira de nosso país imitou um repórter deficiente, alguém a quem ele era superior em privilégio, poder e a capacidade de brigar de volta. Aquilo me partiu o coração, e eu vi aquilo, e não consigo tirar da minha cabeça, porque não foi num filme. Era a vida real. E esse instinto de humilhar, quando é moldado por alguém importante numa plataforma pública, penetra na vida de todos porque dá permissão a que outras pessoas façam a mesma coisa.

“O desrespeito convida o desrespeito. A violência incita a violência. Se os poderosos usam a definição para agredir os outros, todos nós perdemos. O que me traz de volta à imprensa. Precisamos que a imprensa obrigue o poder a prestar contas de cada ultraje.

“É por isso que nossos fundadores garantiram a Liberdade de imprensa em nossa Constituição. Então eu peço à Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood e a todos nós em nossa comunidade a apoiar, juntamente comigo, o Comitê para Proteger Jornalistas, porque nós vamos precisar que eles sigam em frente e eles vão precisar de nós para salvaguardar a verdade.

“Mais uma coisa. Uma vez, quando eu estava no set reclamando de alguma coisa, Tommy Lee Jones me disse: ‘Não é um privilégio, Meryl, ser um ator?’ Sim, é. E nós temos que nos lembrar uns aos outros desse privilégio e da responsabilidade do ato de empatia. Nós todos devemos ter muito orgulho do trabalho que Hollywood honra aqui esta noite.

”E, como minha amiga, a querida Princesa Leia, me disse certa vez: pegue seu coração partido e transforme em arte. Obrigada”.

***

Outro momento emocionante da noite foi exatamente a homenagem a Debbie Reynolds e Carrie Fischer, a Princesa Leia citada por Meryl Streep ao fim de seu discurso. O apresentador Jimmy Fallon falou que perdemos muita gente de talento, ao longo do ano que passou – e aí introduziu um clipe com cenas em que aparecem mãe e filha que morreram no intervalo de poucas horas nos últimos dias de 2016. Foi um clipe curtíssimo, mas lindo, misturando imagens privadas e públicas de Debbie e Carrie, em casa e nas telas.

***

BEVERLY HILLS, CA - JANUARY 08: In this handout photo provided by NBCUniversal, creator, executive producer and actor Donald Glover accepts the award for Best Television Series - Musical or Comedy for the series "Atlanta" during the 74th Annual Golden Globe Awards at The Beverly Hilton Hotel on January 8, 2017 in Beverly Hills, California. (Photo by Paul Drinkwater/NBCUniversal via Getty Images)

Foi muito impressionante a presença maciça de jovens entre os apresentadores, os concorrentes e os vencedores na festa do Globo de Ouro 2017. A rigor, essa talvez tenha sido a característica mais importante da cerimônia.

Uma grande quantidade de novos talentos – como esse Donald Glover, que eu não conhecia, da classe de 1983, que levou o prêmio de melhor ator em série de TV musical ou comédia por Atlanta – da qual é nada menos que o criador. E Atlanta levou o prêmio de melhor série de TV musical ou comédia. (Na foto acima, Donald Glover, ao centro, com parte da equipe da série.)

Como Claire Foy, essa inglesinha da classe de 1984, que teve uma bela interpretação no papel principal da minissérie Little Dorrit (2008), baseada em Charles Dickens, e levou o Globo de Ouro de melhor atriz em série de TV drama por seu trabalho como a Rainha Elizabeth II na primeira temporada do magnífico The Crown. Claire Foy fez o discurso de agradecimento menos glamouroso, menos estelar, mais simplório, mais gente como a gente de toda a festa – maior delícia.

Como Emma Stone, garotinha do interior do Arizona, classe de 1988, que venceu, só para citar duas grandes atrizes e grandes estrelas, Annette Benning e Meryl Streep, e saiu da festa com a estatueta de melhor atriz em filme musical ou comédia por La La Land.

La La Land, o maior vencedor da noite – sete indicações, sete prêmios – é o mais perfeito exemplo da explosão do talento jovem na Hollywood 2016-premiações 2017. Seu autor e diretor, Damien Chazelle, nasceu em 1985! No ano em que seu filme estreou, tinha apenas 31 anos de idade. Fez história: é, até hoje, em 74 anos de existência do prêmio, o mais jovem a vencer o Globo de Ouro de melhor diretor.

La La Land é todo feito por jovens (na foto abaixo, Damien Chazelle, Emma Stone, Ryan Gosling). Realizador-roteirista jovem, atores jovens, sobre jovens à procura de um lugar ao sol no cenário artístico na Los Angeles de hoje – mas jovens que têm respeito pelo passado, têm paixão pelo jazz das gerações anteriores, pelos musicais das gerações anteriores.

Jovens que chegam com talento – e com respeito aos que vieram antes.

Não poderia haver cenário melhor na Hollywood que vai, como o resto do país e do mundo, enfrentar os 4 anos de presidência de um monstro troglodita.

Actors Emma Stone and Ryan Gosling pose with writer and director Damien Chazelle (L) at their Hand and Foot prints ceremony in front of the TCL Chinese Theater in Hollywood on December 7, 2016 ahead of the release of the film LA LA Land set for December 9. / AFP / Frederic J. BROWN        (Photo credit should read FREDERIC J. BROWN/AFP/Getty Images)

9 e 10/1/2017

2 Comentários para “Meryl defende a luz”

  1. A onda de populismo de esquerda na América Latina felizmente entrou em decadência. Em compensação, vamos ter que suportar agora a volta dos populistas histriônicos de direita. O

  2. Gostava muito de poder cumprimentar Meryl Streep pela sua intervenção contra o abominável Trump. O mundo parece-me que vai ficar um lugar muito perigoso com esse sujeito.

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