Marina e o Elmo

No final de semana do Dia dos Pais, em um hotel fazenda perto de São Paulo com o pai, a mãe, o avô e a avó, Marina perdeu o Elmo, o mais antigo e mais querido de todos os seus muitos amiguinhos de pelúcia, plástico, pano ou tudo o mais.

O Elmo é para Marina assim como a moeda número 1 para o Tio Patinhas, como Rosebud para o Cidadão Kane – com perdão pelas más comparações, porque Marina é uma criatura que dá de 10 milhões a zero tanto no Tio Patinhas do Disney quanto do Charles Foster Kane de Welles.

No mesmo dia, o sábado, véspera do Dia dos Pais, Marina perdeu o Elmo – e depois o recuperou.

Vi todo o momento da recuperação. Cada um dos quadros que, quando passam 24 vezes por segundo, diante de um projetor, fazem as imagens se movimentarem na tela. Vi a recuperação do Elmo como se ela estivesse sendo filmada em câmara lenta. Talvez, ou certamente, porque era um dia sem cachaça, e eu estava sóbrio como um juiz.

Estávamos brincando, Marina e eu, na área do salão do hotel em que o chão é recoberto daquelas peças encaixáveis de plástico, para evidenciar que aquela é a brinquedoteca. A uns dois metros de nós, sentados a uma mesa, estavam a mãe, o pai e a avó da pequena.

Naquele exato momento, brincávamos que estávamos num salão de beleza – ela era a moça do salão e cuidava do pouco que resta do meu cabelo, e depois vice-versa, eu era o moço do salão e ela era a freguesa.

Além de nós, havia apenas uma família no grande salão da brinquedoteca, um casal e uma filhinha, que, naquela hora, brincavam junto da piscina de bolinhas.

Era por volta de 21h30. A vida na brinquedoteca vinha em ondas como o mar: num momento, havia 330 crianças, pais, monitores. No momento seguinte, os tios levavam todo mundo para fora, na Caça ao Tesouro da qual Marina decidira não participar.

Naquele momento específico a multidão caçava o tesouro lá fora, e só estávamos no salão bem grande nós e a família junto da piscina de bolinhas.

Marina disse: – “É o meu Elmo!”.

Olhei na direção em que Marina estava olhando. Uma garotinha de uns 4, 5 anos, havia acabado de entrar no salão da brinquedoteca carregando o Elmo da Marina, o mais antigo e mais querido de todos os seus amiguinhos.

Foi tudo em câmara lenta.

Olhei para a garotinha, olhei para o Elmo que ela carregava.

Câmara lenta.

Olhei para trás, vi os pais e a avó de Marina olhando para o Elmo na mão da garotinha – atônitos, surpresos, sem saber o que fazer. Acho que ouvi vozes deles confirmando que era o Elmo.

Eu estava sentado no chão, brincando com a pequena. Me levantei, e falei para a menina me dar o Elmo.

No meio da ação em câmara lenta, a garotinha começou a correr para fora do salão.

Maior confissão de culpa, impossível.

Alcancei a garotinha já fora do salão da brinquedoteca, em um outro cômodo, um hall que tem porta para a área externa e também, à direita, para a gigantesca área do restaurante.

Tive que correr mais que ela. Roubei dela o Elmo com o qual minha neta convive desde que chegou em casa vinda da maternidade. E, não sei por que, sem pensar, sem ter tempo de raciocinar, por pura reação nervosa, sei lá, disse algo assim:

– “Este é o Elmo da minha netinha, e eu agradeço por você ter devolvido ele.”

A garotinha correu para longe de mim, rumo ao restaurante onde provavelmente estavam seus pais e suas irmãs. (A partir daí, e no dia seguinte, domingo, eu observaria bem a família.)

Não há testemunha externa alguma da cena. Estávamos só nós dois naquele hall, naquele momento – a garotinha e eu.

Voltei para o salão da brinquedoteca completamente zonzo. Me lembro de ter olhado para Marina, e percebido que ela estava um tanto assustada, um tanto confusa, sem compreender perfeitamente o que tinha acontecido. E me lembro de ter ouvido minha filha dizer duas coisas. Que seria um problema se Marina tivesse que dormir naquele dia sem o Elmo ao lado dela. E que essa história tinha que estar na agenda do vô.

***

Mais tarde, fiquei tentando refazer todos os passos que antecederam á perda do Elmo. Nem precisava. Mary se lembrava bem. No sábado de manhã, Marina havia descido do quarto dela para o café da manhã com o Elmo, é claro. (Dá para ver os pezinhos dele na mesa, na foto da pequena com a vovó.) Do restaurante tínhamos ido até o campo de futebol, e ela tinha passeado de charrete com a mãe e o Elmo. Depois tínhamos ido para o parquinho.

Logo ao chegar ao parquinho, mostrei para Marina a girafa desenhada com a marcação de altura das crianças, e pedi para ela encostar na girafa para fazer foto. A pequena está comprida, meu Deus, 1 metro e 7, medidos outro dia mesmo no dr. Marcelo. Ficou o registro dela com quase 1 metro e 10, o Elmo a tiracolo, 4 anos e quase 5 meses de convivência.

Em seguida quis balançar, depois pôs o Elmo na balança. Pequenino, o Elmo caiu na areia algumas vezes.

Não me lembrava exatamente do que tinha acontecido depois, mas Mary, sim: depois do balanço, a avó pegou o Elmo e o colocou no alto de um trepa-trepa, enquanto Marina brincava de outras coisas no parquinho.

E foi lá que ele foi esquecido, por volta de 10h30, 11h de sábado.

Não demos pela falta dele – até a garotinha entrar na brinquedoteca por volta das 21h30 e Marina falar “É o meu Elmo!”

Se a garotinha tivesse entrado com o Elmo uns 15 minutos antes, quando havia ali 327 crianças, pais e tios, poderíamos não ter visto. Se tivesse entrado uns 15 minutos depois, quando estavam de novo ali 348 crianças, pais e tios, não teríamos visto.

***

Nunca fui propriamente um repórter muito bom, do tipo que Mary, por exemplo, é – mas, com o tempo, creio que fui conseguindo fazer relatos fiéis dos fatos que presencio.

Tenho uma grande, imensa qualidade: não minto. Não douro pílula, não enfeito. Não acrescento um milímetro de beleza – ou de horror – àquilo que vi.

A descrição do que aconteceu é a mais fiel possível.

***

Sinto vontade de fazer considerações, análises. Até tento lutar contra a vontade, mas sou vencido, e então faço só um comentário curtinho.

Há valores e valores.

Apegar-se a valores materiais é uma das coisas mais tristes que há. Jóias, quadros, ouro, prata, incenso, mirra, imóveis – o que for.

Mas apegar-se a um bonequinho de pano não é algo ruim. De forma alguma.

Roubar de uma criaturinha seu boneco mais querido é um horror.

Nenhuma criança tem a obrigação de saber que um boneco velho, gasto, encontrado num parquinho, é o amigo mais antigo e mais querido de outra criança.

Mas os pais que percebem que a filha está com um boneco de outra criança e não falam nada, esses são criminosos.

13/8/2017

(Na foto, feita na hora de vir embora, com a Tia Dory, por quem se encantou, e, claro, com o Elmo recuperado.)

2 Comentários para “Marina e o Elmo”

  1. Que bom que Marina é tão atenta, o que permitiu que ela recuperasse seu querido amiguinho. E parabéns pelo modo como ela cuida de seu boneco: mais de 4 anos de vida em comum, e o Elmo tinindo! Boa, Marina. É isso aí, quem ama cuida!

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