A sereia e o mar

Desfeito o mistério da odisséia de Luciano Huck. Desde quinta-feira passada, quando o barômetro político Estadão-Ipsos apontou o apresentador com 60% de aprovação, o mundo político entrou em ebulição. Consolidava-se ali um possível candidato com potencial para romper a polarização Lula-Bolsonaro e liderar a tão sonhada, pelos brasileiros, renovação política.

E as pesquisas em suas mãos o davam com dois dígitos nas intenções de voto, o que, convenhamos, é um mar de possibilidades eleitorais nas quais ele poderia nadar de braçada.

Mas Huck é uma personalidade ímpar, não se enquadra nos padrões aos quais nos acostumamos. Normalmente, candidatos desistem de suas intenções eleitorais após um bombardeio de notícias negativas. Huck é o primeiro a fazê-lo após um fato altamente positivo: ter sua imagem mais do que aprovada.

De acordo com suas palavras, resistiu ao canto da sereia, não para retornar à zona de conforto de sua Penélope ou das redes sociais. Mas por achar que pode dar sua parcela de contribuição ao país por meio de movimentos cívicos, sem ser candidato. Não nega a política, apenas diz que ela é insuficiente e necessita ser renovada.

Sua carta não deixa de ser uma tapa de luva de pelica em quem o via como um aventureiro e aríete moderno das elites empresariais, cuja possível candidatura – legítima, diga-se de passagem – se sustentaria apenas por ser uma celebridade. Que o mundo carcomido da política formal tenha resistido a ele, nenhuma novidade. E muito menos a baixaria de Lula de o caracterizar como o candidato da Globo.

Surpresa foi a reação de segmentos da intelectualidade e de mentes embotadas da esquerda que se dizem renovadoras.

Por questões menores, mergulharam na onda da desqualificação de Huck, como se seu ingresso na disputa presidencial fosse a mais perfeita edição da espetacularização da política.

Não se deram conta que estavam ajudando a dinamitar uma das possibilidades de o centro se aglutinar em torno de uma proposta mais arejada, pautada na redefinição do papel do Estado, na combinação do liberalismo político com a universalização dos direitos sociais e em novos padrões éticos.

Amarrado ao mastro para não cair na tentação da sereia, Huck jogou a toalha, mas o mar onde sua candidatura poderia navegar continua imenso. Ele vem se agitando desde as jornadas de julho de 2013, quando ficou evidenciado o fosso entre a representação política e a sociedade.

Mesmo com as manifestações multitudinárias do impeachment, o sistema político aprofundou sua impermeabilidade, com vistas a garantir sua reprodução nas eleições de 2018.

Mudanças também ocorreram em águas mais profundas e em escala planetária. A fragmentação das classes e o advento da sociedade do conhecimento e identitária tornaram anacrônicas polarizações passadas, como burgueses e proletários, esquerda e direita.

Em grande medida, a crise de representação decorre daí.  No caso brasileiro o fenômeno foi agravado pelas mazelas da forma de se fazer política e pela maior crise ética, econômica, social e política de nossa História.

Vivemos a seguinte contradição: há um espaço enorme para uma candidatura de centro e renovadora, mas o sistema político praticamente inviabiliza a renovação. Os partidos tradicionais se fortaleceram por meio de definição de regras eleitorais voltadas para a reeleição de seus parlamentares. Mas são gigantes de pés de barro sem conexão com a sociedade.

A demanda por uma candidatura capaz de aglutinar o centro e promover a renovação política continua existindo, independentemente da desistência do apresentador.  Alguém vai preencher esse espaço.

De imediato, os ventos da fortuna parecem soprar na direção de Geraldo Alckmin. No mesmo dia o governador ganhou na loteria por duas vezes: com o fim da odisséia de Huck e com a sua unção como presidente do consenso peessedebista.  Terá contudo o desafio de mostrar ser competitivo a ponto de atrair os partidos tradicionais do centro democrático e, ao mesmo tempo, ser o depositário das expectativas de renovação da política, que Luciano Huck tão bem expressou ao final do seu artigo:

“Não há nada mais importante do que tomarmos consciência da importância da política e de que precisamos nos mover concretamente na direção da atuação incisiva, para que não sejamos mais vítimas passivas e manobráveis de gente desonesta, sem caráter e incapaz de entender o conceito básico de interdependência ou do pensar no coletivo (…) A  hora é de trabalhar por soluções coletivas inteligentes e inovadoras para o país, e não de focar no próprio umbigo ou de alimentar polêmicas pueris e gritas sem sentido.”

Perfeito, com um acréscimo: e também para não sermos vítimas de candidaturas que querem nos remeter ao mar cinzento, onde cantam as sereias do populismo ou da incompetência.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 29/11/2017.

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